COMO EU VOS AMEI

Maio 2, 2024

At 10,25-26.34-35.44-48; Sl 98; 1 Jo 4,7-10; Jo 15,9-17

1. Sendo o Evangelho deste Domingo VI da Páscoa (João 15,9-17) a continuação imediata do Evangelho do Domingo V (João 15,1-8), e porque a sua rede terminológica continua a ser finíssima, vamos começar também por observar atentamente a sua paisagem textual:

«Como me amou (agapáô) o Pai, também eu vos amei. Permanecei no meu amor (agápê). Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, como eu guardei os mandamentos do meu Pai e permaneço no seu amor. Falei-vos (laléô) estas coisas, para que a minha alegria esteja em vós, e a vossa alegria seja plenificada (plêróô).

É este o meu mandamento (entolê): que vos ameis uns aos outros como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que aquele que dá (títhêmi) a sua vida (tên psychên autoû) pelos seus amigos (phíloi). Vós sois meus amigos, se fizerdes as coisas que eu vos mando (entéllomai). Não mais vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor, mas chamei-vos amigos, porque todas as coisas que ouvi do meu Pai vo-las dei a conhecer (gnôrízô). Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos constituí para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça, para que tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, ele vos dê. Isto vos mando: que vos ameis uns aos outros» (João 15,9-17).

2. As notas mais vezes ouvidas nesta melodia são: «Amar/Amor» (9 vezes), «mandar/mandamento» (5 vezes), «Pai» (4 vezes), «permanecer» (4 vezes), «amigos» (3 vezes), «alegria» (2 vezes), «fruto» (2 vezes). Mas a raiz, o tronco e a seiva do texto, isto é, a sua verdadeira linha melódica, reside na rede exposta do amor: a fonte do amor é o Pai, que o comunica ao Filho, o qual, por sua vez, o comunica aos seus discípulos e amigos (João 15,9-10), para que estes o vivam e, por contágio, a outros o comuniquem, fazendo-o frutificar (João 15,16). O modo é sempre o mesmo e único: guardar os mandamentos. Jesus guarda os mandamentos do Pai (João 15,10), e entrega o seu mandamento aos seus discípulos fiéis: «Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei» (João 15,12; cf. 13,34), para que estes o guardem também (João 15,10.14).

3. Ainda se define claramente em que consiste este amor: amar assim é dar a própria vida (tên psychên autoû) (João 15,13). Este «dar» aparece no texto grego expresso com o verbo títhêmi, «pôr», «apostar» a vida. Tudo fica ainda mais claro se lermos com atenção o grande dito de Jesus no contexto do Bom e Belo Pastor: «Por isto o Pai me ama: porque Eu ponho (títhêmi) a minha vida, para de novo a receber (lambánô). Ninguém ma retira (aírô) de mim; sou Eu que a ponho (títhêmi) por mim mesmo. Tenho autoridade de a pôr (títhêmi), e tenho autoridade de a receber (lambánô) de novo. Este foi o mandamento (entolê) que recebi (lambánô) do meu Pai» (João 10,17-18). Sem qualquer equívoco agora: amar é dar a própria vida. E este amor novo, que consiste em dar a própria vida, é tudo o que o Pai manda fazer.

4. Pode parecer estranho, à primeira vista, que o Amor seja objeto de um mandamento. Mas prestando um pouco mais de atenção, acabamos por perceber que amar não é estar apaixonado. E estar apaixonado não significa necessariamente amar. Estar apaixonado é um estado; amar é um ato. Sofre-se um estado; decide-se um ato. É, por isso, que o Deus da Escritura manda amar. Se amar fosse simplesmente apaixonar-se, tal mandamento seria um absurdo, pois ninguém pode exigir a alguém que se apaixone. Amar é uma sucessão de atos em cadeia: uma guerra, portanto. Não é por acaso que agápê (amor) e agôn (luta) têm a mesma etimologia. Paradoxo do amor, que é uma luta, a luta do amor (agôn tês ágapês), do amor novo, que não é contra alguém, mas a favor de todos: o amor faz-te feliz, matando-te! Quanto mais amas, lutas, e te matas a amar, mais te encontras: «Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; ao contrário, quem perder a sua vida por causa de mim, salvá-la-á» (Lucas 9,24). Neste sentido, o amor (agápê) verdadeiro é agónico. Implica luta (agôn), porque implica decisões a todo o momento. Quando o amor não é agónico, então é egoísta. No mundo bíblico, a nascente do mal não reside na paixão, no coração que bate forte; está, antes, no coração duro, empedernido, empedrado, esclerosado, um «coração de pedra» (leb ha՚eben), oxímoro vertiginoso que o profeta Ezequiel usou para classificar o coração empedernido e embotado de Israel (Ezequiel 36,26).

5. É, portanto, tudo o que Jesus, o Filho, faz por nós. E nos manda fazer também, dado que nos manda amar como Ele nos amou (João 13,34; 15,12), nova e paradoxal, desmesurada medida do amor, que plenifica e subverte a antiga equação nivelada: «Ama o teu próximo como a ti mesmo» (Levítico 19,18). Para tanto, dá-nos a conhecer, por graça, tudo o que ouviu do Pai (João 15,15), o divino colóquio, habilitando-nos assim a rezar ao Pai (João 15,16).

6. O Apóstolo reforça, na sua Primeira Carta (1 João 4,7-10), a insistência no horizonte novo do amor, repetindo que «quem ama, nasceu de Deus, e conhece-o (ginôskô) (1 João 4,7), ao contrário de quem não ama, que não conhece Deus (1 João 4,8). Se Deus é amor (1 João 4,8 e 16), e se «só o semelhante conhece o semelhante», é decisivo que este amor chegue até nós, para que, sendo feitos por amor semelhantes a Deus, possamos também conhecer Deus. E expõe de novo a rede do amor, desde a sua fonte, que é o Pai, que nos amou e enviou o seu Filho Unigénito para nos dar a vida mediante a oferta propiciatória (hilasmós) da sua vida pelos nossos pecados, que Ele absorve e absolve (1 João 4,9-10).

7. Atenção, porém, que o amor de Deus não é um património restrito e limitado, um exclusivo só acessível a alguns privilegiados, mediante inscrições, quotas pagas, registos, determinadas raças ou grupos. Chega a todos aqueles que o acolhem. Também esses nascem de Deus. O amor é de Deus; não é sequer prerrogativa dos discípulos de Jesus. Se quem ama nasceu de Deus, foi gerado por Deus (gennáô), então o amor não é nosso; é de Deus. Esta imensa afirmação implica que nunca nos podemos julgar donos do amor, pois não é nossa a patente do amor. Tem outro registo. Apenas nos é dado humildemente reconhecer que «é gerado por Deus» quem já vive no amor. Aí está, a prová-lo, na leitura de hoje do Livro dos Atos dos Apóstolos 10,25-48, o pagão Cornélio a entrar de pleno direito na comunidade dos filhos de Deus, perante o espanto dos judeo-cristãos de Jerusalém, que julgavam que Deus e o Amor de Deus eram só para eles!

8. É sempre importante que tomemos consciência de que temos o dever de entregar este amor a outros, e não de nos fecharmos dentro de uma cerca, ainda que de rosas seja a cerca! Escreveu bem e rezou bem, em «As idades da vida espiritual», o conhecido teólogo ortodoxo russo Pavel Evdokimov (1901-1970): «Não permitas, Senhor, que o teu Amor e a tua Palavra sejam na minha vida como um santuário, que uma vedação separa da casa e da estrada». Um tal fechamento seria pecar contra o Amor.

9. Levantar-se-á sempre, desde o santuário do nosso coração emocionado, o hino coral e universal, que é o Salmo 98. Tudo e todos são chamados a formar uma bela orquestra, que nunca deixe de cantar os louvores de Deus. Desde o Templo (harpa, cítara, shôphar) até à inteira criação: mar e terra, rios (que são os braços e as mãos do mar, e, por isso, batem palmas), montes e colinas.

10. Passa também no ano em curso, neste Domingo VI da Páscoa, o Dia da Mãe. Sobre esta terra dorida, anestesiada e indiferente, uma Mãe verdadeira ainda é o ícone mais belo deste amor imenso e sem pauta nem medida, que não é meu, nem é teu, nem é nosso. É de Deus. Nós sabemos isso. Mas uma Mãe sabe isso melhor. É por isso que é fácil, neste Dia da Mãe, ver cair pelo rosto de cada Mãe uma lágrima de tristeza ou de alegria! Melhor assim, Mulher e Mãe: sentirás, com certeza, a mão carinhosa de Deus a afagar o teu rosto e a enxugar essa lágrima, de acordo com a lição da Leitura do Livro do Apocalipse 21,4.

António Couto


A VIDEIRA BRAVA E A VIDEIRA MANSA

Abril 26, 2024

Vence-nos às vezes o cansaço,

E o agraço azeda os nossos dias,

E ficamos sem saber bem

Onde encher de alegria

As nossas almotolias.

O Evangelho de hoje

Põe Jesus no meio de nós a dizer:

“Eu sou a videira, a verdadeira”,

E é assim que ficamos a saber

Que uma enxertia

Pode salvar a monotonia

Do nosso dia-a-dia.

A enxertia na videira mansa e boa,

Que é Jesus,

Pode curar a azia das uvas bravias,

Que a nossa vida produz.

Aproximemo-nos então mais de Jesus,

Que é a videira verdadeira,

E saboreemos a alegria e a maravilha,

Respiremos os aromas da serra e do campo,

Acariciemos os ramos das videiras

Que começam a pintar de verde as nossas vinhas,

E comecemos já a degustar este néctar do céu

À nossa terra descido.

Sim, como diz um velho texto judeo-cristão,

«A nossa terra dará muito fruto,

Dez mil por um:

Cada videira dará mil ramos,

Cada ramo mil cachos,

Cada cacho mil bagos,

Cada bago centenas de litros de vinho!».

Vem, Senhor Jesus,

Põe-nos na rota dos frutos.

Senta-nos à tua mesa,

Reparte connosco o teu pão gozoso,

E serve-nos um bocadinho do teu vinho generoso.

António Couto


A VIDEIRA VERDADEIRA E NÓS, OS RAMOS

Abril 26, 2024

1. Embora, neste espaço, não o possamos fazer sempre, é sempre oportuno visitar e revisitar o texto do Evangelho, vê-lo, lê-lo, acariciá-lo, saboreá-lo. Hoje, Domingo V da Páscoa, entramos por aí:

«Eu sou (Egô eimi) a videira (hê ámpelos), a verdadeira (hê alêthinê), e o meu Pai é o agricultor. Todo o ramo (tò klêma) em mim (en emoí) não dando fruto (mê phérô karpós), ele corta-o, e todo o que dá fruto, limpa-o, para que dê mais fruto. Vós já estais limpos pela palavra que vos falei (laléô). Permanecei (ménô) em mim, e eu em vós (en hymîn). Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira, assim também vós, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira; vós os ramos. Aquele que permanece em mim e eu nele, esse dá muito fruto, porque sem mim não podeis fazer nada. Se alguém não permanecer em mim, é lançado fora, como o ramo, e seca, e recolhem-nos, e lançam-nos no fogo, e arde. Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós, pedi o que quiserdes, e ser-vos-á feito. Nisto é glorificado o meu Pai: que deis muito fruto e vos torneis meus discípulos» (João 15,1-8).

2. Servindo-se da estratégia da repetição, e articulando muito bem, numa rede finíssima, vocábulos e locuções, o Evangelho deste Domingo V da Páscoa (João 15,1-8) serve-nos a vida verdadeira, divina comunhão, que, do Pai, mediante o Filho, no Espírito, vem até nós, e nos é oferecida e dada. A rede terminológica é imponente: «permanecer» (7 vezes), «em mim» (6 vezes), «dar fruto» (6 vezes), «ramo» (4 vezes), «videira» (3 vezes). O discurso abre de forma abrupta com a afirmação solene e soberana: «Eu sou», que coloca o leitor na linha da grande revelação de Jesus no Evangelho de João, e na revelação de Deus em todo o AT, desde Êxodo 3,14. De notar que a locução «Eu sou» (Egô eimi) se faz notar no Evangelho de João com uma frequência elevadíssima (29 vezes), considerando a frequência da sua aparição nos Evangelhos sinóticos (Mateus 5 vezes; Marcos 3 vezes; Lucas 4 vezes). Esta discrepância torna-se ainda mais notória se confrontarmos as vezes em que esta locução surge nos lábios de Jesus: João 26 vezes; Mateus 1 vez; Marcos 2 vezes; Lucas 2 vezes.

3. O cenário do Evangelho do passado Domingo (João 10,11-18) era a Festa da Dedicação (hanûkkah), perfeitamente ajustada ao amor dedicado do Bom e Belo Pastor. O cenário do Evangelho de hoje (João 15,1-8) é a Festa da Páscoa (desde João 13,1-2), do Fruto novo a nós dado, da Vida nova a nós dada, da passagem de Jesus deste mundo para o Pai, do vinho novo do Reino a chegar. A unidade discursiva do Evangelho de hoje insere-se dentro do grande discurso de Jesus que vai desde João 13,12b até 17,26, palavras ditas por Jesus na intimidade da mesa, entre a Ceia e o lava-pés (João 13,1-12a) e a travessia do Cédron para entrar no jardim (João 18,1). É neste contexto de soberana intimidade que se nos depara, em sintonia e em primeiro plano, Jesus que é «a videira, a verdadeira» (João 15,1). Note-se bem o adjetivo «verdadeira», com artigo (he alêthinê), colocado enfaticamente no final da afirmação inicial. Esta afirmação remete analepticamente para tantas passagens do Antigo Testamento que apresentavam Israel como a videira com carinho transplantada do Egito para a Terra Prometida, tratada sempre com amor, mas depois abandonada e queimada no fogo (Salmo 80,9-17), amada e cantada, mas depois entregue aos animais para que a devastassem  (Isaías 5,1-7), guardada, regada, cuidada, mas depois pisada e queimada (Isaías 27,2-4; Jeremias 2,21; Ezequiel 19,10-14). Videira antiga, fracassada, que dá lugar à Videira nova, a verdadeira, que é Jesus. Salta à vista que a única solução para esta videira brava, que é Israel e que somos nós também, passa por uma enxertia em «a videira, a verdadeira», que é Jesus. E pela poda ou limpeza levada a cabo pela Palavra de Jesus (João 15,2-3).

4. A videira que era Israel produziu uvas azedas em vez de uvas boas e doces, porque abandonou o Deus verdadeiro, para ir atrás dos ídolos. Mas «a videira, a verdadeira», que é Jesus, está agora plantada no meio de nós. E nós podemos ser os seus ramos, enxertados nele, e dar assim uvas boas e doces, Bom e Belo fruto. Basta, para tanto, «permanecer» nele, que é «a videira, a verdadeira», e deixar a sua vida, a sua seiva, vivificar os ramos. Trata-se, para nós, de permanecer em Jesus, como ele permanece em nós (João 15,4), pois veio habitar em nós (João 14,23). Ele habita «em homem», em nós, pela sua incarnação. Nós somos chamados a habitar nele.

5. Habitar nele é fazer dele a nossa casa, o nosso chão, a nossa porta, as nossas janelas, a nossa mesa, o lugar em que nos alimentamos, repousamos, amansamos, depois das nossas agitações complicadas, deceções, fracassos, lutas e incompreensões. O lugar onde nos reunimos, para repartir e saborear o pão e o vinho da alegria, para partir depois com nova alegria e nova energia ao encontro de mais irmãos. Boa Nova em movimento. Seara ondulante ao sabor do vento do Espírito.

6. É Jesus o único indispensável para que haja fruto: «Sem mim, nada podeis fazer» (João 15,5). É bom e belo que a Igreja inteira compreenda bem que a segurança, a paz e os frutos não nascem de técnicas cada vez mais apuradas nem de mecanismos político-económicos cada vez mais sofisticados, mas do seu abandono seguro na Palavra de Deus, aprendendo a viver, por assim dizer, «dentro da Palavra, para se deixar guardar e nutrir dela como de um ventre materno», belo dizer de S. João Paulo II, Pastores gregis [2003], n.º 15, retomado por Bento XVI, Verbum Domini [2010], n.º 79. Só assim, nutridos pela Palavra de Deus, pela vida de Deus, que corre na Videira e nos seus ramos, daremos fruto abundante, que é a missão missionária de que somos incumbidos. «Dar fruto» é uma locução que se repete por seis vezes no texto do Evangelho de hoje. Claramente para vincar a sua importância. Esta referência ao fruto só se encontra em mais duas circunstâncias do IV Evangelho, sempre com pendor missionário: João 4,36-38 e 12,24.

7. A lição do Livro do Atos dos Apóstolos, hoje recebida (9,26-31), e que nos faz bem saborear, aviva as tintas do retrato de família da Igreja primitiva, que vivia ao sabor da Palavra de Deus, da comunhão, da fração do pão e da oração, e que, não obstante os problemas, que sabia delicadamente resolver, «vivia em paz, edificando-se e caminhando no temor do Senhor, e crescia com a consolação do Espírito Santo» (9,31). Forte provocação para também nós, Igreja de hoje, tirarmos o nosso retrato de família, pondo os dois lado-a-lado, e retirarmos daí as lições que se impõem.

8. A Primeira Carta de S. João, no extrato hoje lido (3,18-24), volta a insistir, retomando a rede terminológica do Evangelho, na importância do mútuo permanecer: de nós em Deus, e de Deus em nós. É esta a fonte e o modo da verdadeira fecundidade do Evangelho. Não se trata de técnicas, mas de vida. E do manto de afeto de que se deve revestir qualquer verdadeira comunidade cristã: «Meus filhos», é assim, em acentuada toada familiar, que abre a lição de hoje.

9. Nem podia ser de outra maneira, pois nós sabemos bem que «o seu jugo é suave e a sua carga é leve» (Mateus 11,30). Se nos parecer pesada, então é porque lhe estamos a pegar mal! Reflitamos e rezemos, pois, para podermos entender ainda melhor esta melodia de «a videira, a verdadeira», os ramos sadios e viçosos, a Casa onde moramos, a Mesa onde comemos, as uvas Boas e Belas carregadas de Alegria. E, em confronto, também se entende melhor a secura, os ramos secos, a vinha abandonada, a vida ao abandono.

10. Enfim, o Salmo 33, que hoje cantamos, é um verdadeiro «canto novo» (shîr hadash) a fazer vibrar as fibras do nosso coração com a música do amor misericordioso que nos vem de Deus. Mas é também música sem palavras (terûʽah) (v. 2), jubilação, exultação, lalação de radical confiança da criança que em nós sorri e dança, porque Deus vela por nós com amor fiel, como se fosse um manto que nos envolve, nos protege e nos aquece. Comenta Santo Agostinho: «Já sabes o que é o canto novo: um homem novo, um canto novo». Um fruto novo.

António Couto


A TUA MELODIA

Abril 20, 2024

Senhor Jesus Cristo,

Único Senhor da minha vida,

Bom Pastor dos meus passos inseguros

E do silêncio inquieto do meu coração,

Cheio de sonhos, anseios, dúvidas, inquietações.

Senhor Jesus,

Faz ressoar em mim a tua voz de paz e de ternura.

Eu sei que pronuncias o meu nome com doçura,

E me envias ao encontro daquele meu irmão que Te procura.

Fico contigo sentado junto ao poço.

Alumia o meu pobre coração.

Vejo que, de toda a parte, chega gente de cântaro na mão.

Dispõe de mim, Senhor,

Nesta hora de Nova Evangelização.

Que eu saiba, Senhor,

Interpretar bem a tua melodia.

Que eu saiba, Senhor,

Dizer sempre SIM como Maria.

António Couto


BOM PASTOR

Abril 19, 2024

At 4,8-12; Sl 118; 1 Jo 3,1-2; Jo 10,11-18

1. Domingo IV da Páscoa. Domingo do Bom, Belo, Perfeito e Verdadeiro Pastor. É este o significado largo do adjetivo grego kalós e do hebraico thôb, que qualifica o nome Pastor. Por isso, hoje é também o Dia do Bom e Belo Pastor, e Dia Mundial de Oração pelas Vocações, que são sempre um dom do amor de Deus à sua Igreja e ao mundo. É possível que este discurso sobre o pastor que cuida das suas ovelhas provoque nos tempos de hoje um certo fastio. Quem é que hoje gostaria de ser considerado uma ovelha mimada e pertencer a um rebanho? Que necessidade temos de um pastor que cuide de nós e nos guie? Sentimos orgulho em sermos nós a encontrar o nosso caminho e a tratar da nossa vida. E somos levados a pensar que o pastor interdita a nossa autonomia, reduz a nossa independência e põe em causa a nossa liberdade, enchendo-nos de cautelas e proibições!

2. O Evangelho que marca o ritmo deste Dia Grande é João 10,11-18, que surge enquadrado na Festa judaica anual da Dedicação do Templo (cf. João 10,22). Situemo-nos. O selêucida Antíoco IV Epifânio tinha profanado o Templo de Jerusalém, introduzindo lá cultos pagãos. Isto aconteceu no ano 167 a.C. Contra esta helenização e paganização do judaísmo lutaram os Macabeus, e, no ano 164 a.C., Judas Macabeu procedeu à Purificação do Templo e à sua Dedicação ao Deus Vivo. É este importante acontecimento que deve ser celebrado todos os anos, durante oito dias, com a Festa da Dedicação, a partir do dia 25 do mês de Kisleu, que, no ano em curso de 2024, corresponde ao nosso dia 25 de dezembro (desde o pôr-do-sol de 25 de dezembro até ao anoitecer de 2 de janeiro de 2025).

3. A Festa da Dedicação, em hebraico hanûkkah, celebra-se durante oito dias, e tem como símbolo o candelabro de oito braços. Relata o Talmude que, quando os judeus fiéis entraram no Templo profanado pelos pagãos helenistas, encontraram uma única âmbula de azeite puro (kasher) de oliveira para reacender o candelabro de sete braços, em hebraico menôrah, que é um dos símbolos de Israel, e que deve arder em permanência, noite e dia, diante do Deus Vivo presente no Santo dos Santos. Todavia, nos cálculos habituais, uma âmbula de azeite duraria apenas um dia, e eram precisos oito dias para preparar novo azeite puro. Pois bem, o azeite daquela única âmbula durou milagrosamente oito dias! Daí que, na Festa da Dedicação, se acenda um candelabro de oito braços, chamado hanûkkiyyah. Mas acende-se apenas uma luz por dia, depois do pôr-do-sol, aumentando progressivamente até estarem acesas as oito luzes. Além disso, e ao contrário das luzes da menôrah e do Sábado, que alumiam o interior do Santuário e da casa de família respetivamente, as Luzes do candelabro da Dedicação, refere o ritual, devem ser vistas cá fora: devem alumiar o ambiente social, político, comercial e cultural. E também, de forma diferente das luzes da menôrah e do Sábado, não se acendem todas de uma vez, mas progressivamente, uma por dia, porque, quando as condições são adversas (paganismo helenista, paganismos modernos, escuro), não basta acender uma luz e mantê-la. É preciso aumentar constantemente a luz. Mais luz. Mais luz. Mais luz.

4. Como este simbolismo é importante para os dias de hoje e para o tempo que atravessamos! Está escuro cá dentro e lá fora, o mundo parece desconstruir-se, o paganismo é galopante! Mais do que nunca, é preciso, portanto, não apenas manter a luz, mas aumentá-la progressivamente. E está em maravilhosa sintonia com a Luz Grande que deve alumiar este Domingo do Bom e Belo Pastor, que é Jesus, verdadeira Luz do mundo, Dom do Amor de Deus ao nosso coração. Atear esta Luz de Jesus no nosso coração é sempre o segredo maior do Dia do Bom Pastor e do Dia Mundial de Oração pelas Vocações.

5. O resto é a força e a beleza da imagem do Bom Pastor, que dá a Vida Eterna às suas ovelhas, que as segura pela mão, que as conhece, que as ama, enquanto elas escutam a voz do Bom Pastor e o seguem. Maravilhosa Comunhão. Música encantatória.

6. A figura do Pastor Bom e Belo como que salta da página selada, para surgir em pessoa à nossa frente. Ao dizer «Eu sou», está também, ao mesmo tempo, a dizer «vós sois». Está, portanto, a estabelecer uma relação pessoal de proximidade, confiança e intimidade connosco, bem expressa, de resto, nas articulações verbais «chamar pelo nome», «conhecer», «ouvir a voz», «dar a vida». Note-se que, no mundo bíblico, o «conhecimento» não exprime teoria ou teorias, mas é a expressão viva, quase corpórea, do contacto pessoal e do diálogo amoroso. O bocadinho da Primeira Carta de S. João, hoje lido (3,1-2), mostra também a maravilha deste conhecimento novo, que faz de nós «filhos de Deus» (tékna Theoû) e «semelhantes a Ele» (hómoioi autô). Em boa verdade, «só o semelhante conhece o semelhante». Por isso e para isso, Deus se fez primeiro semelhante a nós, homem verdadeiro, para nos tornar depois semelhantes a Ele, «deuses por graça» (cf. João 10,34-35). Por isso também, Jesus, o Filho, nos dá a conhecer tudo o que ouviu do Pai (João 15,15), o divino colóquio. E se, na inteira história humana, se pode afirmar, como faz a Escritura Santa, que «nunca ninguém viu Deus» (João 1,18; cf. 6,46), essa visão, em versão transformante, fica, todavia, em aberto, para o cume da nossa vida de filhos de Deus, como diz o Apóstolo, hoje: «semelhantes a Ele seremos, porque o veremos como Ele é» (1 João 3,2).

7. Mas esta vida livre, verdadeira, plena e bela, assente na verdade e na confiança, sem mentiras nem imposturas nem malabarismos, deixa ver em expresso contraponto o seu oposto. É que, além do Bom Pastor, também saltam da página os ladrões, os salteadores, os mercenários que, em vez de conjugarem os verbos acima indicados para traduzir a relação do Pastor Bom e Belo com o seu rebanho, conjugam antes os verbos «roubar», «matar», «destruir», «abandonar», «fugir». Como esta página antiga e sempre nova de João 10,11-18 lê e desvenda os tempos de hoje! Pedro já tinha montado este cenário no Sinédrio (Atos 4,8-12), apresentando outra vez aos chefes do povo e anciãos (Atos 4,8), membros do Sinédrio, este Jesus, que vós crucificastes e Deus ressuscitou dos mortos (Atos 4,10), como o único em que há salvação (Atos 4,12). Ele é o Bom e Belo Pastor, dador de vida, face ao qual os membros do Sinédrio fazem claramente a figura de mercenários, impostores e ladrões! Mas esta história seriada vem já da primeira página do Génesis, desde aquele fruto a nós dado (Génesis 1,29), ou por nós furtado (cf. Génesis 3,6) – fruto de um furto! –, história que emerge novamente nas últimas páginas de Mateus, que nos mostram ainda melhor o verdadeiro fruto a nós dado na Eucaristia (Mateus 26,26-29) e no Ressuscitado, Fruto novo que deve ser dado a toda a gente (Mateus 28,1-10.16-20), vendo-se, todavia, já no escuro, em contraluz, os impostores que congeminam e propagam, para tentar anular a força daquele Fruto, a lenda de um furto (Mateus 27,62-66; 28,11-15). Leitura admirável, mas também implacável.

8. Mas o texto grandioso de João 10,11-18 passa também mensagens intemporais que, em cada tempo e lugar, devem interpelar a comunidade cristã. Assim, quando Jesus diz: «Eu sou a porta», não está a usar uma linguagem da ordem da arquitetura e da carpintaria. É de uma porta pessoal que se trata. E esta porta pessoal tem um nome e um rosto: Jesus de Nazaré, Jesus de Deus. E esta porta serve para «entrar e sair». «Entrar e sair» é um merisma [= figura literária que diz o todo acostando as duas extremidades] que traduz a nossa vida toda. É a nossa vida toda sempre em referência a Jesus Cristo. Entende-se, não com a atual criação industrial de gado, em que os animais estão quase sempre em clausura e o pasto lhes é fornecido em manjedouras apropriadas, visando sempre uma maior produtividade, mas com os «apriscos» [= mais abrir do que fechar, como indica o étimo latino «aprire»] antigos, em que os animais se recolhiam apenas para se protegerem do frio da noite e dos assaltos das feras ou dos ladrões, e procuravam fora o seu alimento, sempre conduzidos pelo pastor.

9. Note-se ainda que os Evangelhos falam sempre de rebanho, e não de ovelhas separadas. Quando falam de uma ovelha sozinha, é para descrever a situação negativa de uma ovelha desgarrada ou perdida, que se perdeu do rebanho ou da comunidade, e deixou de seguir o pastor e de ouvir a sua voz. Note-se também que as ovelhas «entram pela porta», mas não é para ficarem descansadas e recolhidas, fechadas sobre si mesmas. É para sair, pois é fora que encontrarão pastagem. Lição para a comunidade dos discípulos de Jesus de hoje e de sempre: o trabalho belo e o alimento bom que nos alimenta e nos mantém saudáveis espera-nos lá fora! Que Deus nos dê então sempre um grande apetite!

10. Cantemos por isso o Salmo 118, que é o último canto do chamado «Pequeno Hallel da Páscoa» (113-118), mas que era seguramente cantado noutras festividades de Israel, nomeadamente na Festa das Tendas, tendo em conta o seu teor processional, e até a sua distribuição por coros. Este Salmo levanta-se do meio da alegria própria da Festa («Este é o dia que o Senhor fez,/ nele nos alegremos e exultemos!»: v. 24) e eleva ao Deus sempre fiel uma grande Ação de Graças por todas as maravilhas que Ele tem realizado em favor do seu povo. Sim, toda a nossa energia e toda a alegria que nos habita é o próprio Senhor, conforme o belíssimo v. 14: «Minha força e meu canto YAH!», que soa assim em hebraico: ‘azzî wezimrat YAH. Além do nosso Salmo, a expressão densa e impressiva encontra-se ainda em Êxodo 15,2 e Isaías 12,2. YAH está por YHWH. O refrão que vamos cantar faz-nos olhar para Jesus, pedra rejeitada pelos construtores, que veio a tornar-se, na verdade, pedra angular na construção do edifício espiritual, novo, que se constrói a partir do cume, e não à nossa maneira, desde baixo, sobre pesados alicerces. Ele é o nosso único Salvador. Por isso, este grande Salmo transborda de Ação de Graças.

11. Concede-nos, Senhor, Belo e Bom Pastor, que nunca nos tresmalhemos do teu imenso amor, e que saibamos sempre levar o tom e o sabor da tua voz que chama e ama a cada irmão perdido em casa ou numa estrada de lama.

António Couto


JESUS À LUZ DA ESCRITURA

Abril 13, 2024

Quando o Ressuscitado

Surge no meio dos seus discípulos

E os saúda com a paz

Com um rio de paz

Mostra-lhes as mãos e os pés

E o coração

E presta-se a todo o tipo de inspeção

Come diante deles uma posta de peixe assado

Não faz rebentar neles a emoção

Gera até mais dúvidas do que alegria

Ficando os discípulos mais longe de Deus

E mais perto do medo que inspiram os fantasmas.

Falta àqueles discípulos reconhecer

Que a história pessoal de Jesus

É a história do Messias sofredor e glorioso

Inscrita na história mais ampla da Escritura

Sendo por isso necessário

Que a nossa mente seja por Deus aberta

Como o foram os olhos dos dois de Emaús

Para compreendermos a Escritura

E reconhecermos Jesus.

António Couto


O CORPO DE JESUS ENVOLVIDO NO CORPO DA ESCRITURA

Abril 11, 2024

At 3,13-15.17-19; Sl 4; 1 Jo 2,1-5a; Lc 24,35-48

1. É-nos dada hoje, Domingo III da Páscoa, a graça de escutar a página sublime do Evangelho de Lucas 24,35-48, em que Jesus Ressuscitado se faz ver aos seus discípulos reunidos, que não são apenas os Onze, mas «os Onze e os outros com eles» (v. 33). Jesus Ressuscitado apresenta-se no MEIO deles, e saúda-os com a Paz (eirênê) (v. 36), tema que este Evangelho privilegia, usando o termo por 13 vezes [Mt 4x; Mc 1x; Jo 6x; At 7x], uma espécie de rio de paz que percorre o Evangelho de Lucas desde o coro angélico de 2,14, aquando do nascimento de Jesus, até ao fim. A página de Lucas hoje proclamada, e que pretende mostrar-nos a evidência da Ressurreição de Jesus, não convence os seus discípulos e produz mesmo o efeito contrário, pois é-nos dito pelo narrador que os discípulos ficam assustados (ptoêthentes) e amedrontados (émphoboi), não por saberem que ali estava Deus, mas por julgarem estar a ver um espírito ou um fantasma (pneûma) (v. 37). Jesus questiona a incapacidade destes discípulos e o ceticismo (dialogismós) que os envolve (v. 38), avança ainda novos dados, mas a incredulidade (apistía) permanece, não obstante uns laivos de alegria: duvidam ao mesmo tempo que se alegram, alegram-se com facilidade, acreditam com dificuldade (v. 41), um pouco à semelhança de quanto dito no Evangelho de Mateus que refere com mais racionalidade que «uns adoram e outros duvidam» (Mt 28,17). O leitor que se debruça sobre esta página pode ser assaltado por questões como estas: a) o que terá acontecido àqueles discípulos depois da morte de Jesus?; b) como chegaram ao ponto de afirmar a sua ressurreição?; c) terão sido vítimas de alguma desmedida ilusão?; d) autoconvenceram-se de que a obra de Jesus não podia terminar com aquela morte?; e) é a partir de si mesmos que chegam à fé na ressurreição, e que começam a anunciar convictamente que Jesus está vivo? A página do Evangelho de hoje ajuda-nos a compreender melhor os acontecimentos. Mas fica desde já claro que a Ressurreição de Jesus não pode ser invenção das mentes desiludidas, e sem réstia de esperança, dos discípulos (cf. Lc 24,20-21). Só o Ressuscitado pode tomar a iniciativa de pôr outra vez a arder o coração em cinzas dos discípulos, recorrendo às Escrituras (v. 32).

2. Voltemos, então, ao princípio. Ainda os dois discípulos de Emaús faziam exegese demorada (exegoûnto: impf. de exêgéomai) das coisas acontecidas no caminho e de como Jesus se deu a conhecer (egnôsthê: aor. pass. de ginôskô) a eles (autoîs), dativo do beneficiário, no partir do pão (en tê klásei toû ártou) (v. 35), quando o próprio Ressuscitado irrompeu e ficou de pé no MEIO deles (o lugar da presidência), e saudou-os, dizendo: «A Paz convosco!» (v. 36). O leitor estaria talvez à espera de uma receção apoteótica, do rebentamento de recalcadas emoções, de incontidos gritos de júbilo e de alegria. E, em vez disso, assistimos ao extravasar de medos, perturbação e dúvidas, o que mostra e realça outra vez a sua desilusão sem saída, pois o que pensavam estar a ver diante deles, no MEIO deles, era um espírito, um fantasma (pneûma)! (vv. 37 e 39).

3. Digamo-lo outra vez: esta reação é importante, e manifesta que estes discípulos de Jesus, após aquela morte de Jesus, já tinham desistido de Jesus e nada mais esperavam dele (v. 21). Qualquer novo início só poderia vir de fora, só poderia vir de Deus. Naqueles discípulos não se vislumbrava nenhuma réstia de esperança, nenhuma acha ainda fumegava. Tudo cinza do mais cinzento que há. É a maneira de a Bíblia inteira realçar as intervenções de Deus. Deus não intervém como consequência de um pedido ou desejo nosso, para satisfazer os nossos anseios ou projeções mais insistentes. É sempre pura iniciativa sua, do nosso lado, impensável, imprevisível e incontrolável. Ao mostrar as coisas desta maneira, a Bíblia, toda a Bíblia, antecipa-se em muitos séculos aos «mestres da suspeita» (Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud) e dissolve avant la lettre a sua denúncia de um Deus produzido ou projetado pelos nossos anseios e desejos. É, portanto, de assinalar que estes discípulos de Jesus deem o “dossier Jesus”, que os encantou, por encerrado, e comecem às apalpadelas a planear à sua maneira o “pós-Jesus”. Como se Jesus não estivesse aqui, no MEIO de nós! E como se não houvesse mais nenhuma surpresa para engolir! Não nos esqueçamos da verdade escondida aos olhos dos dois discípulos de Emaús: «Tu és o único (mónos) que não sabe as coisas que aconteceram em Jerusalém nestes dias?» (v. 18). Sim, Ele é o único que não sabe aquelas coisas, estas coisas, como nós as sabemos! Sabe-as de outra maneira, da maneira certa!

4. É assim que Jesus vem sem ser esperado e sem se fazer anunciar. E porque não era possível, da nossa parte, acreditar que fosse Ele, Ele tem mesmo de se identificar, coisa estranha, como se o dono da casa – e Ele é o dono da casa: «Sou eu próprio» (egô eimi autós) (v. 39) –, para entrar na sua própria casa, fosse obrigado a identificar-se. Temos, então, por um lado, o desnorte dos discípulos, e, por outro, Jesus que quer ser por eles reconhecido como o Ressuscitado. Para esse reconhecimento, Jesus vai fazer uso de todos os seus trunfos, mas não exibe qualquer fotografia ou documento. Reprova o ceticismo (dialogismós) que habita o nosso coração (v. 38), mostra as mãos e os pés, como em João 20,20 e 27 mostra as mãos e o lado, que levam a reconhecer o Ressuscitado como o Crucificado, sendo as mãos e os pés, como as mãos e o lado, as marcas da sua vida dada até ao fim (Jo 13,1). No texto que estamos a ler, sujeita-se mesmo a deixar-se apalpar, para dissipar a ideia do fantasma que os seus discípulos têm na cabeça e que, ao contrário de Jesus, não tem carne nem ossos (v. 39-40). Para afastar em definitivo a ideia do fantasma, Jesus come diante deles uma posta de peixe assado (v. 42-43). Note-se uma vez mais que não é pelo rosto que identificamos Jesus Ressuscitado. Se assim fosse, e se Jesus mostrasse o rosto, aqueles discípulos, que com Ele tinham convivido de perto, tê-lo-iam identificado sem demora. Mas não é pelo rosto que Jesus se identifica. É a sua maneira de ser que diz Quem Ele é. E a sua maneira de ser é dar a vida até ao fim. Maneira de ser e de estar connosco. No meio de nós (v. 36), à nossa frente (v. 43), presidindo-nos e precedendo-nos e surpreendendo-nos. Como a Escritura aberta e interpretada.

5. Sintomático que aqueles discípulos, vendo o que veem, nada digam. Permanecem mudos e incrédulos! (v. 41). Eles que antes tinham a boca cheia de palavras e o coração de fé (vv. 34-35)! Mas Jesus continua a ser, é sempre, não o simples orador à maneira dos escribas, mas Aquele que fala com autoridade (Mc 1,22). Ele é a Palavra criadora de mundos novos e de corações novos (Jo 1,3). Quando Ele surge, um mundo novo começa a acontecer. Dentro e fora de nós. E como é que nós podemos falar, se ainda agora estamos a nascer?! Portanto, Ele fala (laléô) como fala a Escritura: «É necessário (deî) que sejam cumpridas (plêrôthênai: inf. aor. pass. de plêróô) todas (pánta) as coisas escritas (gegramména: part. perf. pass. de gráphô) na Lei de Moisése nos Profetas e nos Salmos acerca de mim (perì emoû). […] Assim foi escrito (gégraptai: perf. pass. de gráphô) que o Cristo havia de sofrer (1) e de ressuscitar dos mortos ao terceiro dia (2) e de ser anunciada (kêrýssô) (3) no seu nome a conversão para a remissão dos pecados a todas as nações» (vv. 44-47). E acrescenta com autoridade: «Vós sois testemunhas (mártyres) destas coisas» (v. 48). Ou seja: de nada vale a insistência sobre a materialidade do seu corpo enquanto não formos levados a vê-lo integrado no corpo da Escritura. Não é a evidência incontestável da existência corpórea de Jesus que produz a fé, e é também verdade que a Ressurreição não significa simplesmente voltar da morte a esta vida terrena. Os factos, em si, são mudos e ambíguos, e reclamam um critério de interpretação. Esse critério é a Escritura. É, portanto, necessário que Jesus nos abra «a mente (noûs) para compreendermos as Escrituras» (v. 45). Sim, é só com o seu falar de revelação (laléô) com autoridade (exousía) e com as Escrituras abertas, a transbordar, que Ele dissipa as nossas dúvidas e medos, ao mesmo tempo que nos indica o rumo da Escritura, que abre diante dos nossos olhos a compreensão do Ressuscitado e o sentido obrigatório da missão. E também só agora, com a luz que brota da interpretação das Escrituras, os discípulos experimentam, não uns laivos de alegria, mas a «alegria grande» (chará megálê) (v. 52).

6. O que nos é dado compreender é que a morte e a ressurreição de Jesus fazem parte dos desígnios de Deus, o que implica compreender que a história pessoal de Jesus, enquanto história do Messias sofredor e glorioso, está inscrita dentro da história mais ampla narrada na Escritura, e é por isso que é necessário que a nossa mente seja por Ele aberta para podermos compreender a Escritura. E já agora, porque o texto também o diz, a história da Igreja nascente só pode ser entendida dentro da história de Jesus e dentro do andamento da Escritura. É só neste horizonte de compreensão que se pode entender que a Missão do anúncio do Evangelho não é facultativa, mas se insere na necessidade do plano de Deus, ao mesmo nível da morte e da ressurreição de Jesus. De forma clara, o cristão é batizado na morte de Cristo e vive a vida nova da Ressurreição de Cristo, mas tem de viver também do/e para o anúncio do Evangelho. É este o único lugar do Novo Testamento que guarda esta tripla necessidade: sofrimento e morte de Jesus (1), ressurreição de Jesus (2), anúncio do Evangelho a todas as nações (3). Nos outros lugares do Novo Testamento, esta necessidade afeta apenas as duas primeiras realidades.

7. Esta necessidade divina ou teológica fica registada no uso do verbo grego deî e das coisas para sempre escritas em todas as Escrituras. O para sempre escritas fica gravado no uso dos dois perfeitos (gegramména e gégraptai, respetivamente particípio perfeito passivo e perfeito passivo do verbo gráphô). Se o uso do perfeito indica o «para sempre», o uso da forma passiva aponta para Deus, tratando-se, como é usual classificar-se, de um passivo divino ou teológico.

8. Importa ainda precisar que este necessário anúncio do Evangelho não afeta apenas os Onze, mas «os Onze e os outros com eles» (v. 33), entenda-se, todos os discípulos de Jesus, pois é perante todos [«os Onze e os outros com eles»] – não há mudança de cenário – que Jesus pronuncia o luminoso falar de revelação (vv. 44-47). Sem equívocos então: esta missão afeta-nos a todos, todos os discípulos de Jesus de todos os tempos. Fica ainda claro que o anúncio (kêrygma) do Evangelho não decorre por conta e risco do anunciador (kêryx), que não o faz em seu próprio nome; antes, apresenta-se sempre vinculado a Jesus Cristo, pois o anúncio é feito «em seu nome» (v. 47), é Ele que envia o anunciador. E este anúncio do Evangelho não fica circunscrito a um horizonte limitado, paroquial, diocesano, nacional, continental, pois o seu verdadeiro horizonte são «todas as nações» (v. 47), «todos os lugares», todos os corações.

9. Impõe-se ainda uma anotação sobre aquela importante afirmação final de Jesus, que nos designa como testemunhas (mártyres). É a primeira vez que os discípulos são designados como testemunhas. No mundo de hoje, tal como o conhecemos, falar de testemunhas é falar de alguém que, tendo presenciado um acidente ou um crime, se compromete depois, no tribunal, a apresentar o seu ponto de vista sobre o sucedido. Alguém, portanto, que é chamado a comprometer-se com uma história que não é dele. Para evitar incómodos e chatices, acabamos muitas vezes por dizer logo à partida que não vimos nada. Mas, aqui, é Jesus que nos designa como testemunhas. Convenhamos que esta designação dos cristãos como testemunhas não tem sido nem é habitual. A linguagem corrente cataloga-nos mais depressa como «praticantes» ou «não-praticantes». Mas aqui somos designados como «testemunhas» dos acontecimentos de Jesus Cristo. Aquando da necessária substituição de Judas no colégio apostólico, Pedro traça assim os requisitos necessários que devem presidir à escolha do novo membro que venha a entrar no grupo dos Doze: «É necessário (deî), pois, que, dos homens que vieram connosco (synérchomai) durante todo o tempo em que entrou e saiu à nossa frente o Senhor Jesus, tendo começado desde o Batismo de João até ao dia em que Ele foi arrebatado (anelêmphthê) diante de nós, um destes se torne connosco testemunha (mártys) da sua Ressurreição» (At 1,21-22). Somos, portanto, chamados a envolver-nos de tal modo na história e na vida de Jesus, a ponto de a fazermos nossa, para a transmitir aos outros, não com discursos inflamados ou esgotados, mas com a vida! Sim, aquela história e aquela vida são a nossa história e a nossa vida. Aí está o estilo da testemunha e do evangelizador.

10. É neste ponto preciso e nesta necessidade, que se refere aos desígnios de Deus, que S. Paulo, «o maior missionário de todos os tempos» (Bento XVI) e «modelo de cada evangelizador» (S. Paulo VI), enxerta a sua vida e se entende a si mesmo, pois confessa: «Evangelizar não é para mim um título de glória, mas uma necessidade que se me impõe desde fora (epíkeitai). Ai de mim se não Evangelizar!» (1 Cor 9,16).

11. Aí está, então, o importante acerto com a narrativa do Livro dos Atos dos Apóstolos (3,13-19), que nos mostra Pedro no papel de testemunha (mártys) (v. 15) envolvendo-se e envolvendo outros na história «deste Jesus, que vós entregastes» (v. 13), «mas que Deus ressuscitou dos mortos» (v. 15). E a Primeira Carta de S. João (1,1-5) mostra-nos Jesus Cristo como nosso Advogado (paráklêtos) e vítima de expiação (hilasmós) pelos pecados de todos.

12. O canto sereno, à serena luz da vela, do Salmo 4, que é um canto noturno, enche-nos de paz e de confiança e ensina-nos a viver serenamente, dia e noite, na companhia daquele Deus que se envolveu e envolve na nossa história e na nossa vida, realizando prodígios e reduzindo a fumo os ídolos e as insensatas e orgulhosas manobras humanas. O poeta francês Paul Claudel, que muitas vezes passeava pela Bíblia, parafraseou assim: «Há em mim esta paz que me leva ao sono. Há em mim este tesouro da esperança que me deste».

António Couto


SENHORA DA ANUNCIAÇÃO

Abril 7, 2024

Senhora da Anunciação

E da Visitação,

Que corres ligeira sobre os montes,

Vela por nós,

Fica à nossa beira.

É bom ter a esperança como companheira.

Contigo rezamos ao Senhor:

Dá-nos, Senhor,

Um coração sensível e fraterno,

Capaz de escutar

E de recomeçar.

Mantém-nos reunidos, Senhor,

À volta do pão e da palavra.

Ajuda-nos a discernir

Os rumos a seguir

Nos caminhos sinuosos deste tempo,

Por Ti semeado e por Ti redimido.

Ensina-nos a tornar a tua Igreja toda missionária,

E a fazer de cada paróquia,

Que é a Igreja a residir

No meio das casas dos teus filhos e das tuas filhas,

Uma Casa grande, aberta e feliz,

Átrio de fraternidade,

De onde se possa sempre ver o céu,

E o céu nos possa sempre ver a nós.

António Couto


ANUNCIAÇÃO DO SENHOR

Abril 7, 2024

Is 7,10-14; 8,10; Sl 40; Hb 10,4-10; Lc 1,26-38

1. Dia 25 de março, Dia grande, Dia solene, que reúne a Igreja inteira, Oriente e Ocidente, em celebração compacta ao seu Único Senhor, venerando a sua Mãe, na Solenidade da Anunciação do Senhor à Virgem Maria, que aponta já para o Natal do Senhor. Solenidade transferida para o dia 08 de abril, porque o dia 25 de março coincidiu este ano com a Semana Santa. Ainda que, de facto, separados, hoje os irmãos estão todos unidos e reunidos à mesma mesa da Graça. Demos, por isso, graças a Deus. No Oriente, a Anunciação do Senhor permanece um Mistério tão central que, nas rubricas do calendário litúrgico, apenas cede à Sexta-Feira Santa. No rito bizantino, a própria Vigília Pascal, caso caia no dia 25 de março, reparte a celebração, uma parte do cânon Pascal, outra parte do cânon da Euaggelismós [= Evangelização], nome que este acontecimento recebe no Oriente.

2. O Evangelho neste Dia proclamado (Lucas 1,26-38) é um tecido sublime, que as Igrejas do Ocidente conhecem por «Anunciação», e as do Oriente por «Evangelização». Do céu chega a Alegria incandescente a casa de Maria: «Alegra-te, Maria» [= «Chaîre Maria»; «Ave Maria»], «o Senhor está contigo» (Lucas 1,28), não tenhas medo» (Lucas 1,30), diz a Maria o anjo enviado por Deus. Alguns anos mais tarde, as mulheres que vão ao túmulo de Jesus ouvirão também a mesma música divina: «Alegrai-vos» (Mateus 28,9), «não tenhais medo» (Mateus 28,5). Aí está outra vez a harmonia da Escritura. E nós, Assembleia Santa que hoje se reúne para celebrar os mistérios do seu Senhor e também de Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe, estamos também permanentemente a ouvir esta divina melodia. Portanto, irmãos amados em Cristo, Alegrai-vos, não tenhais medo, o Senhor está no meio de nós!

3. O centro da cena é de Maria, que podemos ver em alta sintonia com a Palavra da Alegria que lhe chega de Deus. Ao contrário da nossa muito ocidental maneira de ver e de sentir, note-se bem que Maria não esboça qualquer reação à presença do anjo, que tão-pouco é narrada. Ela fica perturbada é com a Palavra que lhe cai nos ouvidos e no coração (Lucas 1,29). «Conceberá no ventre» o Filho de Deus (Lucas 1,31-33). «Conceber no ventre» é um pleonasmo intencional só dito de Maria por duas vezes (Lucas 1,31 e 2,21), claramente para a pôr em pura sintonia com o Deus do «ventre das misericórdias» (Lucas 1,78). Note-se como, na sequência do texto, de Isabel só se diz que «concebeu» (Lucas 1,36). Surge então a esperada objeção de Maria: «Como será isso, se não conheço homem?» (Lucas 1,34). O anjo explica que essa conceção terá a ver com a intervenção de Deus, pois se trata do Filho de Deus (Lucas 1,35). Já atrás Maria tinha sido apresentada como «virgem casada» (parthénos emnêsteuménê) (Lucas 1,27). Não se trata de uma subtileza, mas de um estatuto jurídico em que as pessoas consagravam a Deus a sua virgindade e se dedicavam completamente a Deus. Casavam-se, não em ordem à procriação, mas à proteção mútua. Este estatuto jurídico, não sendo usual no mundo judaico do seu tempo, está, porém, solidamente documentado nos últimos séculos antes de Cristo e depois de Cristo.

4. Ultrapassada a objeção, Maria responde: «Eis a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua Palavra» (Lucas 1,38). Maria responde que Sim. Deus chama, mas não impõe. A Maria, e a cada um de nós. Podemos sempre aceitar Deus ou esconder-nos de Deus. Deixar Deus entrar, ou fechar-lhe a porta. Maria aceitou, e, por isso, todas as gerações a proclamarão Bem-aventurada. É o que estamos hoje e aqui a fazer: Feliz és tu, Maria, pioneira de um mundo novo, porque acreditaste em tudo quanto te foi dito da parte do Senhor! Feliz também aquele que ouve a Palavra de Deus e a põe em prática!

5. Memorial desta beleza incandescente é a Basílica da Anunciação, em Nazaré. Esta grandiosa Basílica, em três planos, foi inaugurada em 25 de março de 1969, e foi visitada, ainda as obras estavam em curso, em 1964, pelo Papa Paulo VI. Escavações feitas antes desta grandiosa construção puseram a descoberto, e podem ver-se ainda hoje, os majestosos pilares de uma Catedral levantada em 1099 pelo príncipe cruzado Tancredo, bem como o pavimento em mosaico de uma igreja bizantina, que pode ser datada do ano 450. Mas, descendo mais fundo, até às entranhas da atual Basílica, acede-se à Gruta da Anunciação, sob cujo altar se lê a inscrição Verbum caro hic factum est [«Aqui o Verbo se fez carne»], e a outros lugares de culto antigos, talvez já do século II. Numa grafite antiga foi encontrada a gravação XE MAPIA, abreviação de Chaîre Maria, a primeira Ave-Maria da história.

6. Já se ouve a música de Isaías 7,10-14; 8,10. O cenário é a guerra siro-efraimita, que são dois exércitos, da Síria e de Israel, que põem cerco a Jerusalém, capital do Reino de Judá, no ano 734 a. C., com o intuito de depor Acaz, rei de Judá. Já se vê um Isaías firme e confiante, que, enviado por Deus (Isaías 7,3), atravessa sem medo o cenário da guerra siro-efraimita, para levar ao amedrontado e trémulo rei Acaz (Isaías 7,2), que se encontra junto da nascente de Gihôn, a inspecionar as águas, uma palavra de conforto e de esperança. Para significar melhor tudo isto, Isaías leva o seu filho, que ostenta um nome de esperança She’ar yashûb [= «um “resto” voltará»], pela mão (Isaías 7,3). Um pai, que ousa atravessar um cenário de guerra levando um filho pela mão, é, na verdade, testemunha de outra segurança! A mensagem que Isaías comunica a Acaz consta de quatro pontos: a) tem calma; b) não tenhas medo; c) segura-te em Deus; d) pede um sinal (Isaías 7,11). Já se sabe que o descrente Acaz não pedirá o sinal, diz ele, para não tentar a Deus (Isaías 7,12), isto é, hipocritamente alega uma razão aparentemente religiosa como paravento para esconder a sua incredulidade. Ora, pedir um «sinal», nestas circunstâncias, era sinal de fé e de humildade que reconhece a sua pobreza, como se depreende do comportamento de Abraão (Génesis 15,8), de Gedeão (Juízes 6,36-40) e de Ezequias (2 Reis 20,8-11). Marcada pela incredulidade era antes a recusa de pedir esse «sinal», como sucede com Acaz, que julga Deus incapaz de se interessar pelos nossos problemas.

7. Pouco importa. Eis que Deus dá, de igual maneira, o seu sinal: «A jovem» (‘almah TM; parthénos LXX) concebeu e dará à luz um filho a quem porá o nome de ‘immanû ’el [= «Connosco Deus»]» (Isaías 7,14). A jovem, aqui mencionada, é, em primeira leitura, certamente Abia, filha de Zacarias, esposa de Acaz, mãe de Ezequias (2 Crónicas 29,1). O filho, cujo nascimento é anunciado é certamente, em primeira leitura, Ezequias, filho de Acaz e de Abia, que ainda não tinha dado a Acaz um herdeiro. O nascimento de Ezequias parece ter ocorrido em 733, depois da guerra siro-efraimita. Todavia, como ele não é nomeado, a promessa não se esgota na pessoa de Ezequias. Abre-se ao herdeiro dinástico de qualquer tempo, portador das promessas de Deus para o seu povo. Este «filho» fica assim no campo dos «sinais», de resto como Isaías e os seus filhos (Isaías 8,18), e Mateus procede de forma correta ao ver a promessa realizar-se em Jesus (Mateus 1,18-25). Em primeira leitura, o «sinal» dado a Acaz é que a dinastia davídica, que corria perigo em 734, se salvará. Virá mesmo um tempo de prosperidade e de paz que marcará a infância daquele menino, que se alimentará de leite coalhado e mel (Isaías 7,15), alimentos que simbolizam abundância porque são dom de Deus (Deuteronómio 6,3; 11,9; 32,13-14; Êxodo 3,8 e 17).

8. Por outro lado, antes que o menino atinja a idade da razão, portanto, dentro em breve, os reinos de Israel e da Síria, agora invasores e agressores, serão reduzidos a escombros (Isaías 7,16; cf. 8,3-4). O que acontece, de facto, sendo a Síria anexada pela Assíria ainda em 734, o mesmo acontecendo a grande parte do território de Israel, em 733. A paz e a felicidade dos dias de David e Salomão, ou mesmo do tempo dos Juízes, serão recordadas e vividas em Judá. É o que pretende dizer o oráculo: «O Senhor fará vir sobre ti […] dias tais como não existiram desde o dia em que Efraim se separou de Judá» (Isaías 7,17), ou seja, desde 926, data da morte de Salomão e da separação do Reino de Israel (Norte) da Corte de Jerusalém.

9. Logo a seguir, Isaías introduz um oráculo de desgraça sobre Judá: as águas impetuosas da Assíria virão sobre Judá e submergi-lo-ão (Isaías 8,6-8). Mas é neste novo contexto que o profeta deixa sair, por duas vezes, o desabafo: «‘immanû ’el»! (8,8 e 10). Acostagem extraordinária da salvação à desgraça! Com este suspiro, num novo contexto, a profecia do Emanuel tornou-se tradição já para o próprio Isaías. Esta tradição tem a sua história. Já não temos apenas um sentido histórico único e determinado, mas começa a história da tradição do oráculo do Emanuel que, passando por Is 9,5 e 11,1-9, chegará ao Novo Testamento (Mateus 1,23). Deus connosco sempre.

10. A toada musical que hoje embala a nossa vida está em consonância com esta avenida de sentido que atravessa a Escritura Santa. Travessia que jamais fazemos sozinhos, porque Ele está connosco sempre, e é Ele que abre a Escritura para nós (Lucas 24,32). Na verdade, canta assim o Salmo Responsorial de hoje: «Sacrifício e oblação não Te agradaram,/ mas escavaste-me os ouvidos» (Salmo 40,7). E o texto, notável, da Carta aos Hebreus cita atualizando assim: «Sacrifício e oblação Tu não quiseste,/ mas formaste-me um corpo» (Hebreus 10,5). E é assim, que vem ao nosso mundo, nascendo de Maria, para, no seu corpo e com o seu corpo, mãos, pés, entranhas, coração, inteligência, fazer a vontade de Deus (Hebreus 10,7 e 9; cf. Salmo 40,9), como está escrito acerca d’Ele no rolo antigo (Hebreus 10,7; cf. Salmo 40,8). Assim é ultrapassada a Economia antiga dos muitos sacrifícios e ofertas pela Economia nova em que somos santificados por meio da oferta (minhah) do corpo de Jesus Cristo uma vez por todas (epáphax) (Hebreus 10,10).

António Couto


TOMÉ COMO NÓS

Abril 6, 2024

«O lugar para onde Eu vou,

Vós sabeis o caminho para lá», diz Jesus.

«Nós não sabemos para onde vais,

Como podemos saber o caminho para lá?»,

Retorquiu Tomé.

Tomé é como nós:

Não sabe trabalhar sem metas e objetivos.

E é em função das metas e objetivos,

Que escolhe caminhos e metodologias.

Deus disse a Abraão: «Vai do teu país

Para o país que Eu te fizer ver».

E o narrador diz-nos que «Abraão foi».

Para onde? Para qual país?

Não interessa.

Interessa é saber que uma mão segura nos guia,

E que o caminho que trilhamos nos conduz sempre ao destino.

É assim que faz Jesus também.

Não nos indica no mapa o lugar do destino,

Mas mostra-nos o caminho para chegar lá.

Por isso nos diz: «Vinde atrás de Mim…».

É assim a procissão e a peregrinação.

Ele vai connosco e à nossa frente.

Ele é o caminho, a mão segura,

A água pura,

O pão de trigo.

Ensina-nos, Senhor,

A caminhar contigo.

António Couto


O PERCURSO DE TOMÉ, CHAMADO «GÉMEO»

Abril 5, 2024

At 4,32-35; Sl 118; 1 Jo 5,1-6; Jo 20,19-31

1. Novos percursos se abrem, e é aqui que se inicia o Evangelho do Domingo II da Páscoa (João 20,19-31), que o Papa S. João Paulo II, em 30 de Abril do ano 2000, consagrou como «Domingo da Divina Misericórdia». Os discípulos estão em um lugar, com as portas fechadas, por medo dos judeus. O Ressuscitado, Vida vivente e modo novo de estar presente, que nada nem ninguém pode reter ou derreter, vem e fica no MEIO deles, o lugar da Presidência, e saúda-os: «Shalôm!», «A paz convosco!».

2. Esta Saudação, este Shalôm, esta Paz, a Bondade deste “Bom-Dia”, que ressoa desde a Criação, entra em nós, enche-nos de Bondade e de Alegria, e faz-nos encontrar um modo novo de encarar a vida. Esta Saudação, este Shalôm, esta Paz, este “Bom-Dia” estabelece connosco uma relação nova e boa, e inverte por completo a nossa velha maneira de ver e de viver. Na verdade, estamos habituados a pensar, a decidir e a escolher o que vamos fazer, comprar ou vender. Sou eu que penso, posso, compro, decido, escolho. Como se o mundo inteiro começasse em mim e a partir de mim, nada antes de mim. Como se eu fosse (porque penso que sou) o único senhor do mundo. Ora, o imenso texto do Evangelho de hoje, como, de resto, a Escritura inteira, começa com Alguém que vem de fora do meu alcance, e me surpreende, e me saúda, deixando-me na condição nova e inédita, não de senhor que pensa e escolhe, mas de respondedor que é pensado e escolhido, a quem compete acolher e responder. Quando «eu penso», decido e escolho, escolho sempre um alter ego, isto é, algo ou alguém igual ou semelhante a mim, que venha ao encontro do meu mundo desiderativo e projetado, e o encha e satisfaça. Quando «eu sou pensado» e escolhido e saudado, cabe-me acolher aquela Saudação, aquela «Paz», aquele Shalôm, e responder, responder, responder. O “Bom-Dia” precede o cogito. Precede, inverte e investe.

3. Recebendo o Evangelho de hoje, é Jesus, como sempre, que abre as portas da Alegria fechadas pelo medo. Jesus é o homem das portas abertas e das mãos abertas. E pelos vistos também do coração aberto. As mãos abertas, rasgadas pelos pregos. O coração aberto pela lança do soldado. As portas abertas, porque porta, na língua de Jesus, se diz com o nome patah, nome que, usado como verbo, também significa abrir, de onde deriva que as portas são para abrir, não para fechar. O que acabo de dizer expõe um modo novo de viver, um jeito desajeitado para a nossa maneira de viver fechada por um medo qualquer ou por muitos medos, que afeta as portas, as mãos e o coração. Entenda-se: é esta amostragem, esta ação de mostrar, ação toda de Jesus, que dissipa o medo e faz despontar a Alegria. Primeiro, Jesus; depois, os discípulos. Alegram-se os discípulos, porque veem. Mas veem o quê? Ou veem quem? Veem as portas abertas, as mãos chagadas, o coração rasgado. Mas nisto que lhes é dado ver, eles veem ou reconhecem uma pessoa e o seu modo único de ser e de viver. Eles veem o Senhor! Entenda-se ainda: eles não veem as coisas de Jesus, o aspeto, as roupas, a cor dos olhos, os cabelos. Eles veem, como o Outro Discípulo (João 20,8), a identidade de Jesus! Por isso, onde a tradução portuguesa tem «ao verem o Senhor», neste nosso ver, o texto grego tem o verbo ideîn, de onde deriva, em português, ideia e identidade: ver, não por fora, mas por dentro! Mas este ver por dentro, de ideîn, transporta ainda outra lição: sendo um aoristo, aoristo segundo forte do verbo horáô, então traz em si um tempo carregado como uma arma, que indica um ver pontual situado no tempo, uma experiência vivida, inscrita numa hora do relógio e num quadrado da folha do calendário.

4. Jesus mostra àqueles discípulos as mãos e o lado, sinais que identificam o Ressuscitado com o Crucificado, e agrafa-os à sua missão: «Como o Pai me enviou (apéstalken: perf. de apostéllô), também Eu vos mando ir (pémpô)». O envio d’Ele está no tempo perfeito (é para sempre): está sempre em missão; o nosso está no presente, e passa. O presente da nossa missão aparece, portanto, agrafado à missão de Jesus, e não faz sentido sem ela e sem Ele. Nós implicados e imbricados n’Ele e na missão d’Ele, sabendo nós que Ele está connosco todos os dias (cf. Mateus 28,20). O sopro de Jesus sobre eles é o sopro criador (emphysáô), com o Espírito, para a missão frágil-forte do Perdão. Este sopro só aparece aqui em todo o Novo Testamento! Mas não é difícil construir uma bela ponte para outras passagens, nomeadamente para Génesis 2,7, para o sopro ou alento (napah TM / emphysáô LXX) criador de Deus no rosto do homem.

5. A identidade do Senhor Ressuscitado está para além do rosto. Por isso, vê-lo não implica necessariamente reconhecê-lo, como sucede em não poucas páginas dos Evangelhos. A identidade do Ressuscitado não é do domínio da fotografia. Vem de dentro. Reside na sua vida a nós dada por amor até ao fim, aponta para a Cruz. Por isso, Jesus mostra as mãos e o lado, sinais abertos para entrar no sacrário da sua intimidade, dádiva infinita que rebenta as paredes dos nossos olhos embotados e do nosso coração empedernido. Entenda-se também que a missão que nos é confiada é mostrar Jesus. Está bom de ver que não basta exibir as capas do catecismo que mostram um Jesus de olhos azuis e cabelo louro encaracolado. Só o podemos mostrar com a nossa vida dele recebida, e igualmente dada e comprometida.

6. Para se entender a musicalidade desta página intensa, é necessário repor, em contraponto, outros retalhos musicais nela presentes. Em outros pontos deste Capítulo 20 do Evangelho de João, aparecem no texto outras formas de ver: 1) blépô, que é o ver normal, é o primeiro ver da Madalena, que a pedra retirada do túmulo (João 20,1); 2) theôréô, que é um ver que dá que pensar: é o ver de Pedro quando entra no túmulo e as faixas de linho no chão estendidas, e o sudário dobrado à parte (João 20,6-7): em casa tão arrumada dá para entender que o que se passou não foi obra de ladrões, e levanta a questão: que outras mãos poderão estar por detrás do que é dado ver a Pedro e a nós? Mas Pedro e nós devemos estar aptos a ver ainda mais: pouco antes, no andamento do relato, por ordem de Jesus, Lázaro saiu do túmulo, ligado com as faixas da morte e o rosto tapado com o sudário da morte (João 11,34); mas agora eis que as vestes da morte estão ali abandonadas!; 3) horáô, no tempo perfeito, é o ver da testemunha, que se deve traduzir por «vi e continuo a ver». Enlaça no tempo do relógio, na folha do calendário, mas atravessa o tempo, continua a encher, não apenas os olhos, mas a vida inteira do sujeito deste ver. É o último ver da Madalena, quando anuncia aos discípulos: «Vi (heôraka) o Senhor!» (João 20,18); é o ver dos discípulos, quando diziam repetidamente a Tomé: «Vimos (heôrákamen) o Senhor!» (João 20,25); é o último ver de Tomé, assim traduzido por Jesus: «Porque me viste (heôrakás me), acreditaste (pepísteukas: perf. de pisteúô)» (João 20,29a). Todos estes “veres” assinalados em 3) denotam um ver que começou e continua e transforma a vida.

7. É neste ver continuado, testificado, testemunhado, que dá para uma fé igualmente continuada, testificada, testemunhada, que se vai enxertar o nosso olhar e a nossa fé. Mas acompanhemos as peripécias do texto, até ele se dirigir a nós:

«24Tomé, um dos doze, chamado Dídimo, não estava com eles, quando veio Jesus. 25Diziam-lhe então os outros discípulos: “Vimos (heôrákamen: perf. do verbo horáô) o Senhor!” Ele, porém, disse-lhes: “Se eu não vir (mê ídô: conj. aor2 de horáô) nas suas mãos a marca dos cravos e não meter o meu dedo na marca dos cravos e não meter a minha mão no seu lado, não acreditarei”. 26Oito dias depois, estavam outra vez no interior os seus discípulos, e Tomé com eles.

Vem Jesus, estando as portas fechadas, e ficou de pé no meio deles, e disse: “A paz convosco!”. 27Depois diz a Tomé: “Traz aqui o teu dedo, e (íde: imper. aor2 de horáô) as minhas mãos, e traz a tua mão, e mete-a no meu lado, e não sejas incrédulo, mas crente”. 28Respondeu Tomé, e disse-lhe: “Meu Senhor e meu Deus!” 29Diz-lhe Jesus: “Porque me viste (heôrakás me: perf. de horáô), acreditaste (pepísteukas: perf. de pisteúô).

Felizes os que não tendo visto (mê idóntes: part. aor2 de horáô), acreditaram (pisteúsantes: part. aor. de pisteúô)”» (João 20,24-29).

8. Face ao olhar a transbordar de Jesus (tempo perfeito) dos outros dez discípulos, que perante Tomé repetidamente afirmam: «Vimos (heôrákamen: perf. de horáô) o Senhor!» (João 20,25a), Tomé (aramaico Toma’), chamado Gémeo (Dídymos: tradução literal, em grego, do aramaico Toma’ [= «Gémeo»]), que não estava com eles quando veio Jesus, responde que não recolhe nada desse olhar, e que quer ver com os seus próprios olhos (tempo aoristo) e inspecionar com os seus meios essa realidade nova. Eis as suas palavras: «Se eu não vir (ídô: conj. aor2 de horáô) com os meus olhos (tempo aoristo) nas suas mãos a marca dos cravos, e não meter o meu dedo na marca dos cravos e não meter a minha mão no seu lado, não acreditarei» (João 20,25b).

9. Como sempre, Jesus toma a dianteira, vem com as portas fechadas, não já como expressão do medo, já antes dissipado, mas para que Tomé veja bem a nova condição do Ressuscitado (v. 26b), e dirige-se logo a Tomé, convidando-o à verificação nos moldes adiantados por Tomé (tempo aoristo) (v. 27), retirando, todavia, «a marca dos cravos» e «meter o dedo na marca dos cravos»: não se trata de fazer uma autópsia a um cadáver, mas de ver o Ressuscitado! Tomé, vendo a nova condição do Ressuscitado, para quem nenhuma porta está fechada, e sentindo-se adivinhado, desvendado e desarmado, rendeu-se (v. 28), desistiu de tirar as suas medidas, e adiantou uma das mais belas profissões de fé de toda a Escritura: «Meu Senhor e meu Deus!» (João 20,28), e Jesus confirma a reviravolta operada em Tomé, que viu e continua ver, acreditou e continua a acreditar (tempo perfeito) (v. 29a). É aqui e agora que Jesus se mete connosco, declarando-nos felizes (makárioi), porque não vimos no tempo da nossa história (mê idóntes: part. aoristo segundo forte), mas acreditámos no tempo da nossa história (pisteúsantes: part. aoristo) (v. 29b), certamente enxertando o nosso olhar no olhar daqueles que viram e continuam a ver e deram testemunho e continuam a dar, saindo dos esconderijos da dor e do medo e da descrença para o átrio luminoso da Fé para sempre aberto pelo Ressuscitado, fonte permanente de uma Alegria nova.

10. Notável o percurso dos Discípulos. Fechados e com medo, viram Jesus entrar e ficar no MEIO deles, sem que as portas e as paredes constituíssem obstáculo. Trocaram o medo pela alegria, e também eles começaram a ver de forma continuada o Senhor e a dizê-lo repetidamente. Notável e exemplar para nós o percurso de Tomé, chamado Gémeo: não estava com a comunidade, tão-pouco aceitou o seu testemunho; queria provas. Mas quando veio Jesus e o adivinhou, precedendo-o e presidindo-o, entregou-se completamente! Tomé, chamado Gémeo! Irmão gémeo! Irmão gémeo de quem? Meu e teu, assim pretende o narrador. De vez em quando, também nós não estamos com a comunidade. Como Tomé, chamado Gémeo. Por vezes, também duvidamos e queremos provas. Como Tomé, chamado Gémeo. Salta à vista que também devemos estar com a comunidade. Como Tomé, chamado Gémeo. E professar convictamente a nossa fé no Ressuscitado que nos preside (no MEIO) e nos precede sempre. Como Tomé, chamado Gémeo.

11. A lição do Livro dos Atos dos Apóstolos (4,32-35, mas ver também 2,42-47 e 5,12-16) deste Domingo II da Páscoa é outra vez soberba. Trata-se de uma visita guiada ao Cenáculo, a primeira Catedral da Igreja nascente, mas com ramificações em todas as casas, em todos os corações, bem assente em quatro colunas: o ensino dos Apóstolos (1), a comunhão fraterna (2), a fração do pão (3) e a oração (4). Com a boca cheia de louvor, os olhos de graça, as mãos de paz e de pão, as entranhas de misericórdia, a comunidade bela crescia, crescia, crescia. Não admira. Era tão jovem, leve e bela, que as pessoas lutavam por entrar nela!

12. Nascer de Deus, amar a Deus e o Filho Unigénito de Deus, amar no Filho os filhos de Deus, é a lição da Primeira Carta de São João 5,1-6. O critério é: se nascemos de Deus, então somos filhos de Deus, e, sendo filhos de Deus, somos irmãos. E, se nascemos de Deus, também o amor que nos vincula aos irmãos é de Deus. Amar a Deus é, então, o critério último da fé e da caridade. A vida de Deus em nós, amar como Deus nos ama, permanece, portanto o único critério verdadeiro. Na Primeira Carta de São João 4,20-21, tínhamos anotado o critério de que o nosso amor a Deus é verificável no nosso amor ao próximo. Mas São Paulo adverte-nos com sabedoria que o amor ao próximo pode fingir-se, pois podemos dar todos os nossos bens aos pobres, e não ter a caridade verdadeira (1 Coríntios 13,3). Neste sentido, diz acertadamente São Máximo Confessor (580-662) que «a Páscoa gera a fé e a fé gera o amor». A misericórdia é a chama divina com que devemos acender e purificar o nosso coração.

13. Cantemos por isso o Salmo 118, que é o último canto do chamado «Pequeno Hallel da Páscoa» (113-118), mas que era seguramente cantado noutras festividades de Israel, nomeadamente na Festa das Tendas, tendo em conta o seu teor processional, e até a sua distribuição por coros. Este Salmo levanta-se do meio da alegria própria da Festa («Este é o dia que o Senhor fez,/ nele nos alegremos e exultemos!»: v. 24) e eleva ao Deus sempre fiel uma grande Ação de Graças por todas as maravilhas que Ele tem realizado em favor do seu povo. Sim, toda a nossa energia e toda a melodia que nos habita é o próprio Senhor, conforme o belíssimo v. 14: «Minha força e meu canto YAH!», que soa assim em hebraico: ‘azzî wezimrat YAH. Além do nosso Salmo, a expressão densa e impressiva encontra-se ainda em Êxodo 15,2 e Isaías 12,2. YAH está por YHWH. O refrão que vamos cantar aparece a abrir e a fechar este grande Salmo, e constitui como que o envelope onde guardamos a bela melodia que cantamos. Soa assim: «Louvai o Senhor porque Ele é bom,/ porque para sempre é o seu amor!» (v. 1 e 29).

14. Em tudo e sempre nos precede o nosso bom Deus com a iniciativa do seu amor primeiro e misericordioso.

António Couto


IRROMPE A VIDA, E A PEDRA E AS VESTES DA MORTE FICAM FORA DE SERVIÇO!

Março 30, 2024

At 10,34a.37-43; Sl 118; Cl 3,1-4 (1 Cor 5,6b-8); Jo 20,1-9

1. «Esta é a Obra do Senhor!», assim gritava com «voz forte» (grito de Vitória e de Revelação) Jesus na Cruz, deci­frando a Cruz, recitando o Salmo 22 todo (entenda‑se a meto­nímia de Mateus 27,46 e Marcos 15,34, citando apenas o início: «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?»). Par­ticularmente ao longo da Semana Santa, dita «Grande» ou «dos Mistérios» pela Igreja do Oriente, Deus expôs (proétheto) diante dos nossos olhos atónitos – e logo a partir do Domingo de Ramos – o Rei Vitorioso no seu Trono de Graça e de Glória, que é a Cruz (veja‑se aqui demoradamente Romanos 3,24‑25), tomando posse da sua Igreja‑Esposa para o efeito redimida na «água e no sangue» (João 19,34; Efésios 5,25‑27), isto é, no Espírito Santo, conforme ensina Jesus com «voz forte» (!) no grande texto de João 7,37-39. Para aqui apontava também a caminhada quaresmal, a qual – vê‑se agora claramente – só daqui podia afinal ter partido. É este «o Mistério Grande» (Efésios 5,32) que nos foi dado a conhecer por Deus (Romanos 16,25‑26; 1 Coríntios 2,7‑10; Efésios 3,3‑11; Colossenses 1,26‑27). E só Deus pode dar tanto a conhecer (veja‑se agora o texto espantoso de Ef 3,14‑21). É quanto Deus operou na Cruz! Por isso, exultamos e nos alegramos com a Chará, a alegria grande da Páscoa, pois «este é o Dia que o Senhor fez» (Salmo 118,24) e em que o Senhor nos fez! É o «Primeiro Dia» (Mateus 28,1; Marcos 16,2 e 9; Lucas 24,1; João 20,1 e 19; Atos 20,7; 1 Coríntios 16,2), e tal permanecerá para sempre (!), o «Dia do Senhor, o Dia Grande» (Atos 2,20; Apocalipse 1,10), o Domingo, todos os Domingos, o Ano Litúrgico inteiro, o Ano da Graça do Senhor, em que a Igreja‑Esposa, redi­mida, santificada, bela (apresentada no Apocalipse com voz forte!), celebra jubilosamente o seu Senhor, à volta do al­tar, do ambão, do batistério: tudo «sinais» do túmulo aberto do Senhor Ressuscitado, de onde jorra continuamente a vida e a mensagem da Ressurreição. Aleluia!

2. O Domingo de Páscoa da Ressurreição do Senhor oferece-nos o grande texto de João 20,1-9, com a descoberta do túmulo aberto, mas não vazio! Túmulo aberto: a pedra muito grande (Marcos 16,4) do poder da morte tinha sido retirada, e o Anjo do Senhor sentou-se sobre ela (Mateus 28,2): impressionante imagem de soberania e vitória! Mas não vazio: está, na verdade, cheio de sinais, que é preciso ler com atenção: um jovem sentado à direita com uma túnica branca (Marcos 16,4); dois homens com vestes fulgurantes (Lucas 24,4); as faixas de linho no chão e o sudário enrolado em outro lugar (João 20,6-7). É importante ler os sinais e ouvir as mensagens! Se o túmulo estivesse vazio, como vulgarmente e inadvertidamente dizemos, estávamos perante uma ausência cega e muda. Na verdade, os sinais e as mensagens mostram o abandono das vestes da morte e deixam entrever uma forma de vida nova que somos chamados a identificar.

3. O texto imenso de João 20,1-9 coloca-nos ainda diante dos olhos o início de diferentes percursos por parte de diferentes figuras face aos sinais encontrados ou ainda não, lidos ou ainda não.

4. A Madalena vai de manhã cedo, ainda escuro, ao túmulo, e vê (blépei), com um olhar normal (verbo grego blépô), um olhar que até causa aflição, a pedra retirada (êrménos) para sempre e por Deus (João 20,1), tal é o significado imposto pela forma verbal êrménos, particípio perfeito passivo do verbo aírô. De facto, até dói e aflige que se veja o inefável (ação de Deus!) como quem vê uma coisa qualquer, cegos como estamos tantas vezes pelos nossos preconceitos! Esta pedra para sempre retirada por Deus reclama e estabelece um claro contraponto com a pedra por algum tempo retirada pelos homens do túmulo de Lázaro. Chegado ao túmulo de Lázaro, Jesus manda retirar (árate: impv. aor. de aírô) a pedra (cf. João 11,39), e mãos humanas retiraram-na (êran: aoristo de aírô) (cf. João 11,41) por algum tempo, pois Lázaro, trazido da morte por Jesus a esta vida terrena, vai naturalmente voltar a morrer. No que se refere ao túmulo de Jesus, a Madalena, cega pelos seus preconceitos, falha a visão do inefável, e corre logo, equivocada e baralhada, a levar uma notícia falsa: «Retiraram (êran: aoristo do verbo aírô) o Senhor do túmulo, e não sabemos onde o puseram» (João 20,2). O que a Madalena diz, trocando o perfeito pass. pelo aoristo simples, é que mãos humanas retiraram (ato histórico pontual) o Senhor do túmulo. Mas o leitor atento e competente do IV Evangelho não estranha esta cegueira da Madalena. É que o narrador informa-nos que ela anda ainda no escuro (João 20,1), e, no IV Evangelho, quem anda na noite e no escuro, anda perdido na incompreensão e na cegueira, e nada entende, e nada do que faça dá bom resultado. A oposição luz-trevas atravessa de lés-a-lés o inteiro texto do IV Evangelho. A Luz verdadeira que vem a este mundo para iluminar todos os homens é Jesus (João 1,9). Sem esta Luz, que é Jesus, andamos às escuras, na noite, na cegueira, na dor, no fracasso, na incompetência, na incompreensão. É assim, narrativamente – e, portanto, exemplarmente, para nós, leitores –, que somos levados a constatar como Nicodemos, que anda de noite (João 3,2) e nada entende, como os discípulos que nada pescam de noite (João 21,3), e no meio do escuro andam perdidos (João 6,17-18), como o homem da noite na noite perdido, que é Judas (João 13,30; 18,3), enfim, como Pedro, perdido no pátio da noite e no meio dos guardas (João 18,17-18).

5. A notícia levada pela Madalena põe em movimento Simão Pedro e «o outro discípulo». Anote‑se a progressão e repare-se atentamente nos verbos utilizados: 1) Maria Madale­na vai ao túmulo, e (blépei) a pedra(da morte) retirada. 2) «O outro discípulo», corria juntamente com Pedro, mas chegou primeiro (!), inclina-se e (blépei) as faixas de linho no chão. 3) Pedro, que corria juntamente com «o outro discípulo», mas SEGUINDO-O e chegando depois… Na verdade, ainda em João 18,15, os dois SEGUIAM Jesus, que é a correta postura do discípulo. Pedro, porém, não SEGUIU Jesus até ao fim: ficou ali estacionado no pátio do Sumo-Sacerdote! Mais do que isso e pior do que isso, em vez de estar com Jesus, Pedro ficou com os guardas, a aquecer-se com os guardas! (João 18,18). Pedro, portanto, não fez o curso ou o percurso de discípulo de Jesus até ao fim, até à Cruz e ao túmulo! Digamos, à nossa maneira, que deixou por fazer umas quantas unidades curriculares. É por isso que agora tem de SEGUIR alguém que tenha SEGUIDO Jesus até ao fim. É por isso, e só por isso – nada tem a ver com idades (Pedro mais idoso, «o outro discípulo» mais jovem!) – que Pedro tem agora de SEGUIR «o outro discípulo», chegando naturalmente ao túmulo atrás dele. Note-se ainda que, não obstante um ir à frente e o outro atrás, correm os dois juntos. É aquilo que ainda hoje vemos na catequese e na mistagogia cristãs: corremos sempre juntos, mas alguém vai à frente, para ensinar o caminho aos outros! Belíssima comunhão em corrida!

6. Pedro, que corria juntamente com «o outro discípulo», mas SEGUINDO-O, entra no túmulo que «o outro discípulo» cuidadosamente sinaliza e lhe aponta (ele é o grande sinalizador de Jesus: veja-se João 13,24 e 21,7), e (theôreî, ind. presente do verbo theôréô: um ver que dá que pensar e que abre para a fé: cf. João 2,23; 4,19; 6,2.19.40.62) as faixas de linho no chão e o sudário que cobrira o Rosto de Jesus, à parte, dobrado cuidadosamente, como «sinal» do Corpo ausente do Ressuscitado! Conclusão: o corpo de Jesus não foi roubado, como supôs a Madalena equivocada! Os ladrões não costumam deixar a casa roubada com tanta ordem, aprumo e esmero! Por isso, Pedro com o olhar de quem fica a pensar no que terá acontecido… Olhando para trás, pode comparar-se com o que se passou com Lázaro. Por ordem de Jesus, mãos humanas retiraram por algum tempo a pedra que tapava o túmulo de Lázaro (cf. João 11,41). Por ordem de Jesus, Lázaro saiu do túmulo com as vestes da morte, com as faixas da morte a prenderem-lhe os pés e as mãos e o sudário a tapar-lhe o rosto (cf. João 11,44a). Foi mesmo necessária uma nova ordem de Jesus para que o libertassem e o deixassem ir (cf. João 11,44b). Em contraponto, a pedra agora da morte retirada para sempre e por Deus faz ver que o poder da morte não tem ali mais qualquer domínio. E a indicação preciosa de que as faixas da morte estavam estendidas no chão, inutilizadas, e que o sudário se apresentava cuidadosamente dobrado fazem ver a Pedro que o que ali aconteceu não foi obra de ladrões, mas Pedro ainda não está apto para compreender o que fazem ali as vestes da morte deixadas para trás (João 20,6-7).

7. «O outro discípulo» entrou depois de Pedro no túmulo, viu a mesma coisa, mas com olhos diferentes e de forma diferente. Viu por dentro, viu a identidade. O verbo empregado já não é o de Pedro, que era o verbo theôréô, que indica que quem vê, fica a pensar no significado do que vê. «O outro discípulo» entrou no túmulo, e viu de modo absoluto (eîden: ind. aoristo de horáô), com o olhar próprio de quem vê a identidade. Por isso, «o outro discípulo» deu um passo em frente: viu e acreditou de modo absoluto (João 20,8). Todavia, o narrador fecha a cena dizendo que «ainda não tinham entendido a Escritura, que dizia que Ele devia (deî) ressuscitar dos mortos» (João 20,9). A capacidade de compreensão dos discípulos habilitava-os a entender o que podiam entender: que o final da vida terrena de Jesus estava ali, naquela morte na cruz e naquele túmulo, onde ele jazia envolvido nas faixas da morte (cf. João 19,40). Agora já sabem que as faixas no chão estendidas e o sudário cuidadosamente dobrado são sinais, que ainda terão de aprender a ler; como terão também de aprender a ler a Cruz de Jesus como «Obra do Senhor» (Salmo 22,32), bem como outros sinais que Jesus recomendou, para evitar equívocos, que apenas fossem falados depois de o Filho do Homem ressuscitar dos mortos (Marcos 9,9). Será, portanto, o encontro com o Senhor Ressuscitado que habilitará os discípulos de todos os tempos a compreenderem a Escritura (cf. João 2,22) e a interpretarem tudo o que ela diz sobre Jesus (Atos 2,24-31; 13,32-37).

8. É verdade que à pergunta fundamental de Jesus aos seus discípulos, estrategicamente colocada no centro do Evangelho: «Quem dizeis vós que Eu Sou?», Pedro reconheceu e confessou Jesus como «o Cristo, o Filho do Deus vivo» (Mateus 16,16). Mas opõe-se logo energicamente às palavras de Jesus (Mateus 16,22), quando Ele anuncia que vai ter de sofrer muito e morrer e ressuscitar ao terceiro dia (Mateus 16,21). Pedro e os discípulos sabem bem o que é o sofrimento e a morte, mas não têm qualquer noção do que possa ser a ressurreição dos mortos. Marcos 9,10 observa que os discípulos «se interrogavam entre eles sobre o que fosse ressuscitar dos mortos». Além disso, hão de eles certamente ter pensado, para que nos serve um Messias que sofre e morre? Para isto, os discípulos não têm necessidade dele, pois sabem que hão de sofrer e morrer mesmo sem ele. Do Messias, os discípulos, como os judeus em geral, esperavam que viesse pôr fim ao sofrimento e à morte, e que os viesse libertar, a eles e a todos, dessa triste realidade.

9. O que não compreendem agora, compreendê-lo-ão mais tarde, quando souberem a Escritura e experimentarem a força (dýnamis) da Ressurreição de Cristo (Filipenses 3,10-11). Reconhecerão então em Jesus Aquele que veio do outro lado do nosso mundo de sofrimento e de morte, Aquele que veio de Deus, para trazer à humanidade, na sua pessoa, a vida de Deus e a plena comunhão com Ele. Verdadeiramente, a vida, a vida mesmo, é união e comunhão com Deus. E esta vida divina, dada por Jesus à humanidade, atravessa a morte, mas não se extingue nem se apaga na morte. A união e comunhão com Deus, a nós dada por Jesus, não conhece fim nem decaimento nem qualquer tipo de parêntesis. O verdadeiro dom que Jesus nos traz não consiste numa vida terrena que se prolonga sempre, digamos uma vida terrena sem morte terrena, mas na vida em comunhão com Deus, esta sim, inextinguível.

10. Os primeiros cristãos rapidamente fizeram do Santo Sepulcro o seu primeiro e mais venerado lugar de culto, que o Imperador Adriano (117-138) soterrou e paganizou, estabelecendo ali cultos pagãos (no lugar da Ressurreição, colocou a estátua de Júpiter, e, no Calvário, pôs uma estátua de Vénus em mármore), com o intuito de desviar deles os cristãos. O mesmo fez em todos os lugares santos da Palestina. Todavia, Em 326, Santa Helena, mãe do imperador Constantino, que aí terá descoberto a Cruz do Senhor, mandou demolir as construções pagãs, e vieram à luz outra vez os primitivos e venerados lugares cristãos, que foram então englobados num magnífico edifício Constantiniano, consagrado no dia 13 de Setembro do ano 335, e que era formado pela Anástasis, grandioso mausoléu que guardava no centro o Santo Sepulcro, o Triplo Pórtico, que abrigava o rochedo do Gólgota, e o Martyrium, que guardava o lugar da crucifixão e morte do Senhor. No dia imediatamente a seguir à dedicação da Basílica, 14 de Setembro desse ano 335, teve lugar e origem a veneração da Cruz de Cristo, hoje, Festa da Exaltação da Santa Cruz. Esta comemoração ganhou novo relevo quando, em 630, o imperador Eráclio derrotou os Persas, e as relíquias da Cruz foram trazidas processionalmente para Jerusalém. Esta bela Basílica Constantiniana foi danificada por diversas invasões e ocupações. A atual Basílica do Santo Sepulcro, que os ortodoxos e os árabes chamam Anástasis e Qiyama, termos que em grego e árabe significam «Ressurreição», é fruto de cinquenta anos de trabalho dos Cruzados (1099-1149). Aqui estão guardadas as mais fundas raízes da nossa vida cristã, hoje quase uma espécie de «condomínio» de três Igrejas cristãs, infelizmente separadas entre si: a igreja greco-ortodoxa, a romano-católica e a armena. Aqui se sente ao vivo a mesma e comum fé pascal, mas também o drama da separação.

11. Na Leitura que hoje escutamos do Livro dos Atos dos Apóstolos (10,34-43), os Apóstolos dão testemunho do que viram. Foi‑lhes dado ver exatamente para dar teste­munho. Viram e testemunham o Batismo de Jesus, a execução da sua missão filial batismal, a sua Morte na Cruz, a sua Ressurrei­ção Gloriosa, a sua Vinda Gloriosa. Mas os Apóstolos insistem que também os Profetas [= Antigo Testamento] dão testemunho d’Ele Ressuscitado, no qual se cumpre para nós a «remissão dos pecados», o Jubileu divino do Espírito Santo (v. 43). A base profética é imponente: Jeremias 31,34; Isaías 33,24; 53,5‑6; 61,1; Ezequiel 34,16; Daniel 9,24. Ver depois João 20,19‑23. «As Escrituras» (então o Antigo Testamento) apontam para o Ressuscitado! O Ressuscitado remete para «as Escrituras». Cumplicidade entre o Ressuscitado e «as Escrituras». Na verdade, o Ressuscitado cumpre e enche as «Escrituras». Não está depois delas ou no fim delas. Está dentro delas, no meio delas, fá-las transbordar, transborda delas.

12. O Capítulo III da Carta aos Colossenses (3,1-4) trata a «vida nova» em Cristo, que é vida batismal, operada pelo Espírito Santo que faz morrer e renascer na Fonte da Graça. Por isso, adverte solenemente Paulo: «procurai as coi­sas do alto» (v. 1), «pensai as coisas do alto» (v. 2), exorta­ção que ecoa ainda no Diálogo que antecede o Prefácio: «Corações ao alto!», a que respondemos com a alegria e a sabedoria do Espírito: «O nosso coração está em Deus!», enquanto ecoa ainda em cada coração habitado pelo Espírito o «Glória a Deus nas alturas!».

13. Em alternativa a Colossenses 3,1-4, pode ler-se e escutar-se 1 Coríntios 5,6-8. A sua linguagem é da cor da Páscoa (grego páscha, hebraico pesah). O Novo Testamento usa o termo grego páscha [= Páscoa] por 28 vezes, assim distribuídas: 24 vezes nos Evangelhos + Atos 12,4 e Hebreus 11,28, todas em referência exclusiva à Páscoa hebraica do Antigo Testamento; as duas menções que faltam são precisamente 1 Coríntios 5,7 e Lucas 22,15, esta com o precioso lógion de Jesus: «Desejei ardentemente esta Páscoa (toûto tò páscha) comer convosco». Em 1 Coríntios 5,7, lemos a expressão tò páscha hêmôn etýthê Christós, cuja tradução não pode ser «Cristo, a nossa Páscoa, foi imolado», como se vê habitualmente, mas «durante a nossa Páscoa (hebraica), foi imolado Cristo». Os motivos são gramaticais (tò páscha hêmôn é um acusativo adverbial) e teológicos: o cordeiro da páscoa não é um sacrifício imolado; não é queimado sobre o altar; não é oferecido ao Senhor (só o que é oferecido ao Senhor é sacrifício); é convivialmente comido em família. Sacrifício da Páscoa era a ʽôlat-tamid, o holocausto perpétuo, diário, o sacrifício de dois cordeiros, filhos de um ano, um de manhã e outro de tarde, conforme Êxodo 29,38-42 e Números 28,3-8, e que, sendo diário, precedia qualquer celebração festiva. Só depois deste sacrifício quotidiano, se procedia, em dias de festa, como é a Páscoa, ao sacrifício da festa propriamente dito, sacrifício suplementar, e que, na Páscoa, consistia num «sacrifício de ovelhas e bois», este sim, «Páscoa imolada para o Senhor» (Deuteronómio 16,2). De notar também que o Novo Testamento desconhece em absoluto o adjetivo «pascal», de que nós fazemos uso indiscriminado, e não pensado. A restante linguagem da cor da Páscoa que 1 Coríntios 5,6-8 mostra é o fermento (hamets) e os pães ázimos (matstsôt). Servem os termos para Paulo reclamar dos cristãos vida nova (pães ázimos), sem malícia (fermento velho).

António Couto


O PAÍS DA PÁSCOA

Março 30, 2024

Acabámos de entrar no país da Páscoa.

Os pátios dos sacerdotes e de Pilatos

Ficaram para trás,

Para trás ficou também o canto do galo,

Os gritos dos guardas e das multidões,

A febre das traições.

O que se ouve agora é o anúncio do Anjo,

A alegria das mulheres,

A Plenitude da Vida a transbordar

Das páginas da Escritura Santa e da Cruz de Jesus,

O rumor do Amor,

De um Amor novo e subversivo,

Que vence óbitos e ódios,

Raivas e violências,

A raiz de um mundo novo a germinar

Daquela noite de Luz

A entregar Jesus

A quem o queira receber.

Veem-se mulheres e homens a correr,

Belos e leves,

Sobre os montes,

Sem qualquer bagagem a estorvar,

Sem nada a entorpecer,

Como quem acaba agora de nascer.

Move-os apenas a Notícia do Ressuscitado,

A Carícia que acaba de chegar,

E que é preciso levar

À pressa a todo o lado.

Vem, Senhor Jesus Ressuscitado,

Fica connosco,

Vai connosco,

Que precisamos de ter o coração habitado,

E habilitado

A anunciar que a Vida resplandeceu

E que a pedra e as vestes da morte

Ficaram fora de serviço.

António Couto


VIGÍLIA NA NOITE SANTA

Março 30, 2024

Gn 1,1-2,2; Sl 104;/ Gn 22,1-18; Sl 16;/ Ex 14,15-15,1; Ex 15,1-6.17-18;/

Is 54,5-14; Sl 30;/ Is 55,1-11; Is 12,2-6;/ Br 3,9-15.32-4,4; Sl 19;/

Ez 36,16-1a.18-28; Sl 42;/ Rm 6,3-11; Sl 118;/ Mc 16,1-8

1. «Este é o Dia que o Senhor fez!» (Salmo 118,25). Aleluia! Este é o Dia que o Senhor nos fez! Aleluia! Este é o Dia em que o Senhor nos fez! Aleluia! «Por isso, estamos exultantes de alegria» (Salmo 126,3). Aleluia!

2. Este é o Dia em que desfiamos com amor o rosário das tuas maravilhas, tantas elas são, percorrendo a avenida das tuas Escrituras desde a Criação até à Páscoa, desde a Páscoa até à Criação. Tanto faz. Porque neste Dia novo o tempo não nos mede e nos afasta e nos cataloga em séculos e milénios, mas põe-nos todos a conviver lado a lado. É assim que lemos e compreendemos que no teu «Filho amado», Jesus Cristo, Imagem tua e «primogénito dos mortos», «tudo foi criado» (Colossenses 1,16), «e sem Ele nada foi feito» (João 1,3). Lemos e compreendemos que o «teu Filho, Jesus Cristo, não foi Sim e não, mas unicamente Sim» (2 Coríntios 1,19). Passeámos assim no jardim da tua Criação boa e bela, visitámos as suas 452 palavras (Génesis 1,1-2,4a), e nelas não encontrámos, de facto, um único «não». Se o teu Filho amado, Jesus Cristo, Imagem tua e primogénito dos mortos, foi sempre Sim e nunca não, e se foi n’Ele que foram criadas todas as coisas, então a Criação inteira tem também de ser Sim, Sim, Sim, e nunca não.

3. Que belo mundo novo, Senhor, quiseste depositar nas nossas mãos! Que grande Sim nos confiaste, Senhor, antes de nós merecermos de Ti qualquer confiança! Visitámos depois o Egito opressor, e de lá, Tu nos libertaste, Senhor, fazendo-nos atravessar a pé enxuto o mar Vermelho, como se fosse uma «planície verdejante» (Sabedoria 19,7). Vestíamos roupas brancas, trazíamos o coração em festa, e nos lábios um cântico novo, como sucede também ainda hoje, Senhor, neste Dia admirável da tua Ressurreição, em que cantamos outra vez com inefável alegria: «Minha força e meu canto é o Senhor! A Ele devo a minha liberdade!» (Êxodo 15,2).

4. Com Isaías e Ezequiel, recordámos depois as paisagens tristes e sombrias do nosso exílio, mas também da tua admirável proteção. Diz uma velha história rabínica que, um dia, «os jovens perguntaram ao velho rabino quando começou o exílio de Israel. Ao que o arguto rabino terá respondido que o exílio de Israel começou no dia em que Israel deixou de sofrer pelo facto de estar no exílio». Compreenda-se, portanto, que o exílio verdadeiro não consiste simplesmente em estar longe de casa ou da pátria, mas sobretudo em tornar-se indiferente e insensível, sem causas, sem sonhos e sem esperas, gastando o nosso dinheiro com aquilo que não alimenta, e esquecendo o teu insistente convite: «Vinde e comprai sem dinheiro vinho e leite […]. Ouvi-me, ouvi-me, e comei o que é bom» (Isaías 55,1-3). Era assim que andávamos, Senhor, perdidos longe de ti e longe de nós. Mas também lá, à perdição em que andávamos, chegou a tua mão criadora, redentora, libertadora e carinhosa, e reconstruíste a nossa vida sobre a alegria, embelezaste o nosso rosto com óleo perfumado, e vestiste-nos com a veste branca dos teus filhos. E como se isto não enchesse a medida do teu amor sempre sem medida, ainda fizeste connosco uma Aliança nova, e deste-nos um coração novo e um espírito novo, nova pulsação, nova alegria, novo alento, em pura sintonia com o pulsar do teu coração e do teu sopro criador.

5. Coração novo, música nova, ensinada pelos Anjos nos campos de Belém: Gloria in excelsis Deo! Outra vez lado a lado, oh milagre da Escritura Santa, dois acontecimentos no tempo separados: o nascimento de Jesus e a sua morte e Ressurreição: os mesmos Anjos, as mesmas faixas a envolver o Menino e o Crucificado, o Menino deposto na manjedoura, o Crucificado deposto no sepulcro. Extraordinária acostagem do Menino e do Crucificado. E S. Paulo a descodificar o nosso Batismo, pelo qual somos sepultados com Cristo, para com Ele ressurgirmos para uma vida nova (Romanos 6,3-5).

6. E assim chegamos sempre ao Ressuscitado. Àquele Jesus Cristo, Crucificado, Morto e Sepultado, segundo as Escrituras, que se levanta do chão raso e da folha plana de papiro ou de papel, elevando a humana vida e a inteira Escritura à sua Plenitude. Era, na verdade, muito grande (mégas sphódra) aquela pedra que barrava a entrada e a saída do sepulcro (Marcos 16,3-4). Quem a pode retirar? A pedra da morte é sempre intransponível para as nossas forças. Tem, por isso, de ser trabalho de Deus. É assim que as mulheres que vão de madrugada ao sepulcro, veem (theôroûsin: ind. presente de theôréô) com espanto inaudito a pedra do sepulcro para sempre retirada (apokekýlistai: perf. pass. de apokylíô) (Marcos 16,4), e, entrando, viram (eîdon: aoristo segundo de horáô), com não menor espanto, um Anjo vestido de branco, sentado do lado direito. As mulheres que, neste Evangelho segundo Marcos, vão de madrugada ao túmulo, merecem que lhes registemos os nomes. São Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago o Menor e de José, e Salomé, que seguiam e serviam Jesus desde a Galileia, e que não fogem, mas observam (theôroûsai: part. presente de theôréô) de longe a Crucifixão e  Morte de Jesus (Marcos 15,40-41), como observavam (etheôroun: imp. de theôréô) depois o lugar onde foi colocado (Marcos 15,47). Passado o sábado, na madrugada do primeiro dia da semana, o que iam estas mulheres fazer ao túmulo? Ligava-as a Jesus um grande amor, e iam àquele túmulo fazer o que ainda se pode fazer a um morto: ungi-lo com perfumes. Vão as mulheres ao encontro de um morto, mas o que encontram é a Vida, que as sobressalta!

7. A pedra muito grande retirada, no tempo perfeito, representa a porta da habitação da morte para sempre aberta. O modo passivo (passivo divino ou teológico) do verbo revela que um tal afazer só pode ter sido coisa de Deus. O facto de o Anjo aparecer sentado significa que tem autoridade. O lado direito é o lado favorável (cf. Marcos 12,36; 14,62), e sugere que é portador de boas notícias. A cor branca é a cor celeste (cf. Marcos 9,3). Só do Anjo pode vir este dizer com autoridade: «Procurais Jesus de Nazaré, o Crucificado? Ressuscitou; não está aqui (…). Ide dizer aos seus discípulos e a Pedro que Ele vos precede na Galileia. Lá o vereis, como vos disse» (Marcos 16,6-7). Ao mandar levar a notícia aos seus discípulos, acrescenta especificamente o nome de Pedro. É como que o reconhecimento de que o arrependimento e as lágrimas de Pedro pela sua tríplice negação (Marcos 14,66-72) foram aceites. É quase como dizer que, ao contrário do «não conheço esse homem», dito por Pedro a respeito de Jesus (cf. Marcos 14,71), Jesus manda dizer, por meio do Anjo: «mas Eu conheço-te, Pedro, e ver-me-ás de novo». Fica ainda claro que Ele nos precede sempre, e que, portanto, o nosso verdadeiro lugar é sempre «atrás d’Ele», que permanece sempre o único Senhor e o caminho único da nossa vida.

8. O relato evangélico é sóbrio, mas rico e denso. Fiel a esta intensa sobriedade, a arte cristã nunca se atreveu a representar a ressurreição antes dos séculos X-XI. É tal o fulgor da Luz deste mistério, que ficará sempre no domínio do inefável, que simultaneamente ilumina e esconde. É por isso que a Paixão é um relato, mas a Ressurreição, que põe fim ao relato, só nos pode chegar como Notícia, vinda de fora, como a Aurora.

9. É por isso que esta Noite é uma fulguração de Luz e Lume novo. Desde as brasas acesas, ao Círio Pascal aceso, ao nosso coração aceso como o dos discípulos de Emaús. É também por isso que o Batismo começou por ser chamado «Iluminação», sendo a Vigília Pascal também a grande Noite Batismal. E cada batizado levará para sempre a arder dentro de si este Lume, de que não pode fugir, e que ninguém pode apagar.

10. Lume novo, lareira acesa na cidade,/ És Tu, Senhor, o clarão da tarde,/ A notícia, a carícia, a ressurreição./ Ilumina, Senhor, a tua Igreja Santa, e os seus novos filhos que hoje nascem na fonte batismal. Que os nossos passos sejam sempre firmes, e o nosso coração sempre fiel. Vem, Senhor Jesus! Aleluia!

António Couto


A CRUZ DE JESUS

Março 29, 2024

Sim,

Eu sei que foi por mim que desceste a este chão

Pesado, íngreme, irregular,

De longilíneas lajes em que é fácil escorregar.

Mas os teus braços sempre abertos ajudam-me a levantar.

Senhor Jesus,

Deixa-me chegar um pouco mais junto de ti,

Chega-te tu também mais junto de mim.

Segura-me.

Dá-me a tua mão firme, nodosa e corajosa.

Agarro-me.

Sinto sulcos gravados nessa mão.

Sigo-os com o dedo devagar.

Percebo que são as letras do meu nome.

Foi então por mim que desceste a este chão.

O amor verdadeiro está lá sempre primeiro.

Senhora das Dores,

Senhora ao pé-da-Cruz,

Maria, minha Mãe,

Que seguiste até ao fim os passos de Jesus,

Acompanha e protege os meus passos também.

António Couto


PAIXÃO DO SENHOR

Março 29, 2024

Is 52,13-53,12; Sl 31; Hb 4,14-16; 5,7-9; Jo 18,1-19,42

1. Foi-nos dada a graça de nos reunirmos aqui, na Casa de Deus, nesta Sexta-Feira Santa, para celebrarmos, unidos de alma e coração à Igreja inteira, a Una e Santa, a Paixão do único Senhor da nossa vida, «Aquele que nos ama» (Apocalipse 1,5), Jesus Cristo.

2. E foi-nos dado seguir, passo a passo, com a conversão do coração e o louvor no coração, o imenso relato da Paixão do único Senhor da nossa vida, a partir do Evangelho segundo S. João (18,1-19,42). Foi assim que atravessámos o Cedron e entrámos no «jardim». É de noite, mas arde a LUZ, a LUZ, a LUZ. É verdade que já não estamos todos. Judas perdeu-se na NOITE, na NOITE, na NOITE (João 13,30). Virá depois com archotes e lanternas – mísero sucedâneo da LUZ – e com armas (João 18,3). Vem prender a LUZ, mas cai encandeado (João 18,6). Tem de ser a LUZ a ofuscar-se por amor e a entregar-se a ele por amor. Neste ponto preciso, refere o relato de Marcos que nós fugimos todos, abandonando-o (Marcos 14,50; cf. Mateus 26,56). E fugidos andaremos, e perdidos, na noite e no frio, até sermos outra vez por Ele encontrados e recolhidos. Mas já, entretanto, Pedro, perdido, se acolhe a outra luz e se aquece a outro lume (João 18,18). E, interpelado, nega ter andado com Jesus, ter alguma coisa a ver com Jesus, ter parte com Jesus. Nega mesmo conhecer Jesus (Marcos 14,67-71; João 18,17-27).

3. Até que o galo canta, e começa a nascer o dia para Pedro (Marcos 14,72; João 18,1-27). Notemos que quando Judas sai, é de NOITE, e que, depois da negação de Pedro, o DIA nasce com o canto do galo. O relato de Pedro faz parte integrante do relato da Paixão, e não é um seu acompanhamento secundário. É o relato do anunciador. É o relato que serve de base ao futuro anunciador do Evangelho, que não pode limitar-se a atirar para o ar a Notícia do Crucificado Ressuscitado, sem nela se envolver e comprometer. Terá de credibilizar a incrível Notícia que anuncia, contando a sua história de desistente e dissidente, ensonado e renegado, mas recuperado e perdoado e transformado pelo Ressuscitado! Sim. Pedro renegou Jesus e foi-se embora, certamente destroçado com aquela paixão e morte de Jesus. O que se esperava do Messias não é que viesse para sofrer e morrer. Não só não vinha para sofrer e morrer, mas vinha para nos libertar a nós do sofrimento e da morte, assim pensava o judaísmo. Fica assim bem à vista que, se Pedro voltar à cena, não o fará por algum resto de esperança que ainda permaneça nele. Pedro desceu ao fundo. Se ainda emergir, então é porque Jesus é o Vivente e pegou em Pedro e nos outros e em nós. É esta a história da sua vida que Pedro agora vive e terá de contar para credibilizar o anúncio do Ressuscitado. «Conhecer a Páscoa significa, para quem verdadeiramente a conhece, estar implicado nos acontecimentos de Sexta-Feira Santa» (Karl Barth). Percebe-se que só assim é credível o anúncio de Pedro, como o dos restantes Apóstolos, igualmente desistentes e dissidentes e renegados! Como o de Paulo, completamente virado do avesso pela força nova do Ressuscitado! A Igreja está fundada sobre Pedro, mas Pedro está fundado sobre o seu pecado perdoado! Assim Pedro, assim Paulo, assim nós também! O canto do galo é um sinal. Traz para a cena a obra criadora do primeiro dia, em que, segundo o relato do Génesis, «Deus separou a luz e as trevas» (Génesis 1,3-5). Aqui, em contraponto, estão as trevas de Judas e a luz nascente para Pedro. Obra luminosa e criadora. Mas também anunciadora, porque este canto exerce uma função de referência entre as fases do tempo: nenhum animal é mais querigmático do que o galo. Iremos encontrá-lo sobre os nossos antigos campanários, mas já, antes disso, o encontrámos muitas vezes sobre os primeiros sarcófagos cristãos.

4. Mas vejamos ainda melhor a qualidade ou falta dela do testemunho que damos de Jesus. Também aqui a página do Evangelho é admirável e implacável. Jesus acaba de dizer ao Sumo-Sacerdote que não o interrogue a Ele, mas que interrogue aqueles que ouviram os seus ensinamentos, pois não falou às escondidas, mas em público (João 18,19-21). Impressionante verificarmos que, ao mesmo tempo que Jesus faz esta afirmação dentro do Palácio, Pedro esteja a ser interrogado cá fora, e responda negando tudo! (João 18,17.25-27).

5. Mas Jesus prossegue o seu caminho de amor até ao fim. Até à Cruz. É lá que se revela o rosto do doentio gosto pela morte que nos habita. «Salva-te a ti mesmo!» (Lucas 23,35.37.39), gritamos nós repetidamente zombando, porque o que queremos mesmo, não é que Ele se salve; o que queremos mesmo é assistir ao doentio espetáculo da morte! A tanto chegou a nossa malvadez! Um ódio sem motivo, sem fundo, nos habita (Salmo 35,19; 69,5; João 15,25). Ele é o Justo. Ele é a Bondade absolutamente gratuita, sempre Primeira e radical, igualmente sem motivo, sem fundo. Ele ama Primeiro (1 João 4,19), quando éramos ainda pecadores (Romanos 5,8). Por isso, em vez de à nossa violência oferecer mais violência, Ele acolhe-a e acolhe-nos por amor, e por amor a nós se entrega, declarando assim ultrapassados e inúteis os nossos mais requintados ódios e os nossos mais sofisticados instrumentos de guerra (cf. Isaías 2,2-4; Miqueias 4,1-3). Ali, naquele Corpo Crucificado, morto por amor, e por amor exposto por escrito diante dos nossos olhos atónitos (Gálatas 3,1), morre o nosso desejo de morte, o nosso pecado, apagado pelo fogo do amor, que declara o nosso pecado completamente inútil, inutilizado, anulado e ultrapassado (cf. Colossenses 2,14).

6. Ainda vamos a tempo de ver que, sob o olhar do Crucificado, quatro soldados levam as coisas de Jesus, que, para o efeito, dividem em quatro partes: uma para cada um deles (João 19,23). O contraponto, belo, de inexcedível beleza, vem de quatro mulheres (a mãe de Jesus, / a irmã de sua mãe, / Maria, mulher de Cléofas, / e Maria Madalena), que não levam as coisas de Jesus, mas se abraçam à Cruz de Jesus (parà tô staurô) (João 19,25). A expressão grega parà tô staurô, tradução literal «junto da Cruz», é de quem vê a Cruz como uma pessoa (é essa a força daquele dativo: tô staurô); se a Cruz fosse vista como um objeto, teríamos a expressão em acusativo: tòn staurón. Portanto, elas, as mulheres, abraçam a pessoa de Jesus e levam consigo o amor de Jesus!

7. As pessoas mais ligadas a Jesus, neste IV Evangelho são seguramente Maria, sua Mãe, e João Evangelista, aquele que se reclina sobre o peito de Jesus (João 13,25). É espantoso, mas ao longo de todo o Evangelho, o Evangelista nunca se refere a Maria e a João pelo seu nome, mas pela sua relação com Jesus. Assim, não se fala de Maria, mas da mãe de Jesus; não se fala de João, mas do outro discípulo, aquele que Jesus amava! Fica claro: a nossa identidade está na nossa relação com Jesus!

8. Na Cruz, Jesus reza o salmo 22, todo, desde «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?» (Salmo 22,2), até «Esta é a obra do Senhor!» (Salmo 22,32), que são as últimas palavras do Salmo 22, que deixam a claro que é de Deus a obra da Cruz! É assim, nos braços do Pai, que Jesus morre, sendo depois o seu corpo descido da Cruz e carinhosamente envolvido em panos de linho literalmente encharcados com 32 quilos e 800 gramas de perfume! (João 19,39), à imagem do Rei messiânico cantado no Salmo 45,9. Foi sepultado no jardim, num sepulcro novo, no qual ainda ninguém tinha sido deposto (João 19,41). O Rei é sempre o primeiro em tudo. Vem depois aquela madrugada da Ressurreição.

9. Por isso, depois disso, por causa disso, os primeiros cristãos rapidamente fizeram deste Santo Sepulcro o seu primeiro e mais venerado lugar de culto. O Imperador Adriano (117-135) soterrou o Santo Sepulcro e paganizou-o, estabelecendo ali cultos pagãos com a clara intenção de afastar os cristãos: no lugar do Santo Sepulcro, pôs a estátua de Júpiter, e, no Calvário, pôs uma estátua de Vénus em mármore. O mesmo fez, de resto, em todos os lugares santos da Palestina. Todavia, quando em 13 de Setembro de 326, por indicação de um habitante de Jerusalém, Santa Helena, mãe do imperador Constantino, descobriu a Cruz do Senhor, mandou logo demolir as construções pagãs. Foi assim que vieram à luz outra vez os primitivos e venerados lugares cristãos, que foram então englobados num magnífico edifício Constantiniano, consagrado no dia 13 de setembro do ano 335, e que era formado pela basílica da Anástasis, que guardava no centro o Santo Sepulcro, o Triplo Pórtico, que abrigava o rochedo do Gólgota e o Martyrium, que guardava o lugar da crucifixão e morte do Senhor. No dia imediatamente a seguir à dedicação da Basílica, 14 de setembro desse ano 335, teve lugar e origem a adoração da Cruz de Cristo, hoje, Festa da Exaltação da Santa Cruz. A peregrina Egéria, da Galiza, que em finais do século IV, visitou demoradamente os Lugares Santos, diz-nos que a Santa Cruz era então exposta à adoração dos fiéis duas vezes no ano: em 14 de setembro e em Sexta-Feira Santa. Egéria descreve assim a adoração de Sexta-Feira Santa: «desde as 08h00 da manhã até ao meio-dia», «todos passavam, um por um: inclinam-se, tocam a Cruz com a fronte, e depois com os olhos a Cruz e a inscrição, a seguir beijam a Cruz e saem, sem que ninguém toque com a mão na Cruz» (Itinerarium, 36,5; 37,3).

10. Adoremos nós também, com amor, caríssimos irmãos, neste Dia de Sexta-Feira Santa, a Santa Cruz do único Senhor da nossa vida.

António Couto


QUINTA-FEIRA SANTA

Março 28, 2024

Esta Quinta-Feira é Santa:

Sabe a Deus,

Sabe a pão,

Sabe a alegria,

Sabe a Eucaristia!

Esta Quinta-Feira é Santa:

Sabe a amor,

A dádiva da vida,

A uma lágrima em flor,

Sossegada e comovida.

Esta Quinta-Feira é Santa:

Sabe a Ceia

E a Jesus,

Luz grande que incendeia

As trevas do coração,

E põe a mesa cheia

De amor e comunhão.

António Couto


CEIA DO SENHOR

Março 28, 2024

Ex 12,1-8.11-14; Sl 116; 1 Cor 11,23-26; Jo 13,1-15

1. Com esta celebração da Ceia do Senhor, em Quinta-Feira Santa, a Igreja Una e Santa reacende a memória da instituição da Eucaristia, do Sacerdócio e da Caridade, e dá início ao Tríduo Pascal da Paixão e Ressurreição do seu Senhor (o Tríduo Pascal prolonga-se até às Vésperas II do Domingo da Ressurreição), que constitui o ponto mais alto do Ano Litúrgico, de onde tudo parte e aonde tudo chega, coração que bate de amor em cada passo dado, em cada gesto esboçado, em cada casa visitada, em cada mesa posta, em cada pedacinho de pão sonhado e partilhado. É assim que Deus nos dá a graça de caminhar durante todo o Ano Litúrgico, dia após dia, Domingo após Domingo, sempre partindo da Páscoa do Senhor, sempre chegando à Páscoa do Senhor.

2. Neste Dia Santíssimo, é-nos dada a graça de poder escutar um dos mais antigos e intensos relatos da Ceia do Senhor: «O Senhor Jesus, na noite em que ia ser entregue (paredídeto), recebeu (élaben) o pão (árton), e dando graças (eucharistêsas), partiu-o (éklasen) e disse: “Isto é o meu corpo, que é para vós; isto fazei para memória de mim”. Do mesmo modo fez com o cálice, depois da ceia, dizendo: “Este cálice é a nova Aliança no meu sangue; isto fazei, sempre que o beberdes, para memória de mim”. Portanto, sempre que comerdes este pão e beberdes este cálice, estais a anunciar (kataggéllete) a morte do Senhor até que Ele venha (áchris hoû élthê)» (1 Coríntios 11,23-26).

3. Atravessado o relato, deparamo-nos com uma sequência verbal riquíssima, que mostra bem como a vivência da Eucaristia transforma a nossa vida desde dentro, desde o coração, sístole e diástole, ao mesmo tempo sangue e amor a circular nas nossas veias! Vida nova que vem de Deus, como quando o Espírito impele Sansão, os profetas, Paulo ou Jesus. O verbo hebraico para dizer este impulso do Espírito é paՙam. Sim, o Espírito impele-nos e empurra-nos pela estrada fora, mas esta sua ação forte e suave faz-se também sentir por dentro e desde dentro, movendo o coração e as suas avenidas, pois a família etimológica que de paՙam se desprende também serve para dizer o bater do coração e a pulsação (poՙam), e estende-se ainda ao soar do sino e da campainha (paՙamon), cujo som festivo ouvimos há pouco, e se calou, para voltar a soar na noite da Vigília Pascal, e queremos que se oiça bem alto no Domingo da Ressurreição do Senhor. É a voz do Espírito, é a força (dýnamis) irresistível do Espírito. Portanto, o Espírito de Deus que invocamos sobre este pão e sobre este vinho, impele-nos, empurra-nos, impulsiona-nos desde fora, mas move também a nossa vida desde dentro, dando-nos um coração novo, capaz de conjugar em cada dia os verbos fundamentais da Eucaristia: RECEBER, BENDIZER e AGRADECER,/ PARTILHAR e DAR,/ COMEMORAR, ANUNCIAR e ESPERAR.

4. Receber é um verbo fundamental, é a base da nossa vida, do pão e do vinho, vocação e missão sempre de Deus recebidas. Deus antes de nós; Deus para nós. Começamos a Eucaristia de mãos abertas para Deus, grande atitude bíblica e cristã. Dar graças. É só reconhecendo e sabendo e sentindo que a Graça tomou conta de nós, que podemos e sabemos dar graças, outra grande atitude que transforma a nossa vida. Partir, partilhar o pão. Grande atitude a de saber que nada é só meu, nem sequer a minha vida. Tudo é para partilhar com alegria com tantos irmãos e irmãs. Sim, à minha volta há só irmãos e irmãs, e à minha frente há sempre uma mesa posta com lugar para todos. Em memória de Jesus. Sim, amados irmãos e irmãs, nunca podemos esquecer aquele jeito de Jesus. Ele no centro da nossa vida e das nossas atitudes, municiando-as. Anunciar a morte do Senhor. Não se trata de chorar ou de vestir de luto, como quem diz que Jesus morreu e desapareceu. Não é essa a vocação cristã. Trata-se, antes, de saber ver e ler bem a Cruz de Jesus e o caminho da Cruz de Jesus, da sua Morte e Ressurreição. Jesus não morreu para desaparecer. Morreu para viver em plenitude e dar aos seus irmãos essa vida nova, transbordante e transformante. Sim, trata-se de anunciar que Jesus viveu e morreu para dar a vida por amor, para sempre e para todos. E é nessa atitude que continua vivo e presente no meio de nós.

5. Tivemos Hoje também a graça de ouvir o colorido relato da Páscoa primeira, celebrada pelo Povo hebreu no Egito, conforme o relato do Êxodo 12,1-14. «Páscoa» quer dizer «passagem», e põe em cena «passageiros». Com os antigos pastores beduínos seminómadas, que preenchem a memória da pré-história de Israel, aprendemos a passar festivamente para um tempo novo, do inverno para a primavera, numa festa noturna, ao luar, na primeira lua-cheia da primavera, que marca o início da transumância ao encontro de novas pastagens e de vida nova. Com os hebreus, no Egito, sedentarizámos e atualizámos a festa da primeira lua-cheia da primavera dos antigos pastores seminómadas de Israel, e fomos levados, por graça, a passar da escravidão para a liberdade, que é um caminho sempre novo, nunca terminado e sempre a recomeçar, com a cintura apertada, sandálias nos pés, cajado na mão, lume novo aceso no coração. Com Jesus Cristo, fomos, também por graça, levados a passar do pecado para a graça, da soleira da porta para a mesa, da morte para a vida em abundância, da nossa casa para a Casa do Pai. É assim que nós, por graça feitos «filhos no Filho», aprendemos a ser estrangeiros e hóspedes, tranquilamente sentados em Casa e à Mesa daquele único Senhor que servimos e que, paradoxalmente, nos serviu primeiro a nós.

6. É aí que estamos todos, meus irmãos. Aí, entenda-se, em Casa e à Mesa, hospedados. E é aí que Jesus se dirige a Pedro e a cada um de nós, e diz: «Se não te lavo, Pedro, não terás parte comigo!» (João 13,8). Isto é, não participarás da minha vida por amor Dada e Recebida (cf. João 10,17-18). «Ter parte com» Cristo é «participar» no seu supremo serviço de amor até dar a vida para receber a vida. «Ser lavado» e «ter parte com» e «estar puro» é linguagem bíblica de ordenação sacerdotal. Basta ler o texto do Livro dos Números 18,20, juntamente com os Capítulos 29 e 40 do Livro do Êxodo e o Capítulo 8.º do Livro do Levítico, acerca da ordenação sacerdotal de Aarão e dos seus filhos. Está aí, na participação na vida nova de Jesus, no modo novo de viver de Jesus, a fonte do nosso sacerdócio ministerial, mas também do sacerdócio comum dos fiéis.

7. É à Mesa que estamos, meus irmãos, nesta tarde e nesta Ceia Primeira de Quinta-Feira Santa, hospedados na Casa do único Senhor da nossa Vida, «Aquele que nos ama» (Apocalipse 1,5), Jesus Cristo. Reparemos então bem em tudo o que Ele faz e diz no Evangelho de hoje (João 13,1-15), porque tudo n’Ele é exemplar e programático para nós. Diz-nos o narrador atento que Jesus «DEPÕE (títhêmi) o manto» a abrir a cena, no v. 4, e «RECEBE (lambánô) o manto» a fechar a cena, no v. 12. DEPOR e RECEBER são, aos nossos olhos encantados, os mesmos verbos com que, no Capítulo 10.º, o Bom Pastor «DEPÕE (títhêmi) a vida» e «RECEBE (lambánô) a vida» (v. 17). Ora, DEPOR a vida e RECEBER a vida são a imensa e penetrante tradução da Cruz. E entre uma e outra coisa, entre «DEPOR o manto» e «RECEBER o manto», «DEPOR a vida» e «RECEBER a vida», no centro geométrico e teológico do lava-pés (v. 8), aí está a advertência solene que Jesus dirige a Pedro e a cada um de nós: «Se não te lavo, Pedro, não terás parte comigo!» (João 13,8).

8. Por isso, Jesus diz, num imenso dizer de revelação ainda a retinir nos nossos ouvidos e a ecoar em tudo o que fazemos: «Como Eu vos fiz, fazei vós também!» (João 13,15). Vê-se bem, meus irmãos, que não é tanto o que se faz que interessa. Interessa muito mais o «como» se faz. O segredo é dar a vida por amor, para sempre, para todos. Jesus é o único Mestre que ensina a Viver desta maneira. E é assim que fica bem à nossa vista o significado da instituição da Eucaristia, do Sacerdócio e da Caridade.

9. O Salmo 116, que hoje cantamos, é o quarto canto do chamado «Hallel Pascal», que reúne os Salmos 113-118. O Salmo 116 enche de música e de cor a Ceia Pascal hebraica. Na verdade, neste Salmo, canta-se a liberdade e a alegria confiante de vermos a nossa vida segura nas mãos de Deus, que nos retira do esquecimento do túmulo, e reacende a chama que se extingue. Entre os admiradores deste Salmo conta-se, com algum espanto nosso, o filósofo francês Voltaire (1694-1778), que privilegiava o v. 12: «Como restituirei (heshîb) ao Senhor por todos os seus benefícios (gemûlôt) que me deu?». O Salmo fornece logo a seguir a resposta: «O cálice da salvação erguerei,/ e o Nome do Senhor invocarei./ Os meus votos ao Senhor cumprirei,/ diante de todo o seu povo» (v. 13-14). Este cálice erguido e partilhado assinala, no ritual (seder) da Ceia Pascal hebraica, o momento em que ia passando entre os comensais a terceira taça de vinho, a da Ação de Graças. De resto, o orante sabe bem que não pode «restituir» a Deus. Por isso, no Saltério, o sujeito do verbo «restituir» (heshîb: hiphil de shûb) é, por norma, Deus (21 sobre 28 vezes). Mas o orante pode sempre agradecer a Deus e anunciar a todos que Deus atua em favor do seu povo, ação de evangelização.

10. Que o Senhor da nossa vida nos ensine a ser fiéis ao seu dizer e ao seu modo admirável de fazer.

António Couto


MISSA CRISMAL

Março 27, 2024

Is 61,1-3a.6a.8b-9; Sl 89; Ap 1,5-8; Lc 4,16-21

1. «O Espírito do Senhor sobre mim, porque o Senhor me ungiu e me enviou para dar um evangelho aos pobres»: assim se exprime alguém, que se apresenta em primeira pessoa, no texto de Isaías 61, dizendo-se investido pelo Espírito de Deus, ungido por Deus e enviado por Deus para levar um evangelho aos pobres, aos aflitos, aos deserdados, aos injustiçados, aos enlutados. Quem é este alguém que aqui se apresenta tão cheio de Deus e com o seu evangelho para anunciar aos pobres e descartados? Durante mais de cem anos, desde o contributo de Berhnard Duhm (1892) aos estudos do Livro de Isaías, foi-se pacificamente pensando que este alguém que aqui se exprime em primeira pessoa seria o profeta anónimo, autor dos últimos Capítulos (56-66) do Livro de Isaías, a que se convencionou chamar “trito-Isaías”. E este texto de Isaías 61 seria o seu programa vocacional.

2. Hoje já ninguém, ou muito poucos, pensarão assim. Qualquer profeta pode ser impelido pelo Espírito do Senhor e dedicar-se ao anúncio do evangelho, mas não consta que algum profeta tenha sido ungido. A figura escondida nos interstícios do texto, mas que nele emerge em claro relevo, é, sem dúvida o Messias, o verdadeiro Ungido do Senhor, em quem todos os atributos assentam à maravilha (cf. Is 11).

 3. «O Espírito do Senhor sobre mim, porque o Senhor me ungiu e me enviou, repete Jesus, lendo Isaías na sinagoga de Nazaré (Lucas 4,18), e assumindo sobre si a unção e a missão do evangelho, que acabou de ler no Livro de Isaías. Jesus levantou-se para fazer a leitura litúrgica (anaginôskô), e sentou-se para fazer a homilia. E «Os olhos de todos», informa o narrador, «estavam fixos (verbo atenízô) nele!», num misto de espanto, de encanto e de esperança (Lucas 4,20). É breve e intensa a homilia de Jesus, que disse somente: «Hoje cumpriu-se (peplêrôtai: perf. pass. de plêróô) esta Escritura nos vossos ouvidos!» (Lucas 4,21).

4. Nunca ninguém terá feito uma homilia tão breve. E nunca nenhum homileta terá tido uma assembleia tão atenta: todos tinham os olhos espetados nele. Sem sucesso, porém. As palavras entram pelos ouvidos, e não pelos olhos! Se tivessem sido ouvidas, tinham entalado a assistência. Como o «Hoje» nos entala no tempo. É hoje. Nem é ontem nem é amanhã. Não é por acaso que o Evangelho de Lucas traz o «Hoje» para a boca da cena por 10 vezes! «Cumpriu-se» (peplêrotai: perf. pass. de plêróô). A gramática grega diz-nos que estamos perante um perfeito passivo, ou seja um passivo divino ou teológico. Deus em ação, portanto. Deus está aí, em ação, e nós tão distraídos.

5. Condensação e hipérbole do tempo e da Escritura. O tempo deixa de ser o fio tecido e a tecer de chrónos, o fio dos diase dos anos a fio, para se concentrar neste único Hoje (sêmeron), termo técnico, clássico, nas homilias dos Padres gregos, em que cai sobre nós, como um relâmpago, uma vertigem, a Palavra toda de Deus, não nos deixando também senão este único Hoje para responder! Tudo Hoje e Aqui. É este vinco na página, esta dobra, esta mão-cheia de tempo, apenas esta mão-cheia de tempo, que se chama kairós, tempo da graça. Se repararmos bem, se tivermos os olhos bem abertos, veremos então que, na intensa homilia de Jesus, a Palavra salta do plano da folha de papiro ou de papel, e começa a ganhar relevo, forma-se um corpo, desenha-se um rosto, pulsa um coração, ouve-se uma voz. Mas também a tinta irrompe da página selada e alisada, e entra-nos, aos borbotões, pelos olhos adentro, como o ribombar do trovão e o rumor de muitas águas (Ezequiel 1,24; 43,2; Apocalipse 1,15; 14,2; 19,6)! E o sentido rebenta como uma enxurrada, corre pelos caminhos, embate contra portas e janelas, amontoa-se no seu termo, que ele não pode ultrapassar, que é a morte, mas rebenta-o e deixa-nos inundadas a casa e a alma!

6. «O Espírito do Senhor sobre mim, porque o Senhor me ungiu». É assim que nós Hoje, submersos pelo Espírito, reunidos em unum presbyterium, para nos dizermos, temos de receber de Jesus as mesmas palavras que Ele próprio pediu emprestadas e a que deu sentido pleno, corpo, rosto e voz, fazendo-as sair da superfície plana da folha de papiro. «O Espírito do Senhor sobre mim, porque o Senhor me ungiu» constitui, de facto, a maneira mais bela e profunda de o presbitério de uma Diocese poder afirmar em uníssono a sua identidade diaconal, e não patronal. É mesmo a única maneira de nós podermos dizer quem verdadeiramente somos. Algumas formas verbais que podemos pedir outra vez emprestadas a Isaías e a Jesus podem ajudar-nos a perceber melhor a grandeza e a dignidade da nossa vocação e missão: ungidos e enviados para anunciar o Evangelho aos pobres.

7. «Encontrei o meu Servo David, e ungi-o com o meu óleo santo», cantávamos com o Salmo 89,21. Encontro e unção do rei segundo o coração de Deus (1 Samuel 13,14). Mas também o sacerdote era ungido com o azeite santo, como é dito de Aarão num belo poema artisticamente construído em cascata: «Como é bom,/ como é belo,/ viverem unidos os irmãos.// É como azeite do bom sobre a cabeça,/ descendo pela barba,/ a barba de Aarão,/ descendo sobre a boca das suas vestes» (Salmo 133,1-2).

8. Olhamos para o texto, e vemos o azeite de oliveira, perfumado com mirra, cinamomo, cálamo e cássia (Êxodo 30,22-33), a encharcar a cabeça e o cabelo de Aarão, a descer pela barba, e sobre a boca das vestes… A escrita é meticulosa e quer que se veja o azeite, não a descer pelo pescoço, mas por fora, encharcando o humeral (ʼephod), uma espécie de roquete que desce sobre os ombros, e, descendo sempre, encharca depois o peitoral (hoshen), bolsa quadrada, com 25 cm de lado, aplicada sobre o humeral, cobrindo o peito. Sim, quem escreve interessa-se que o azeite encharque o tecido que está sobre os ombros e sobre o peito do sacerdote. Sim, porque nas duas fitas do humeral que estão sobre os ombros, traz o sacerdote incrustadas duas pedras de ónix, uma sobre cada ombro, cada uma gravada com seis nomes das doze tribos de Israel (Êxodo 28,1-14). E, sobre o peito, no peitoral, traz o sacerdote doze pedras preciosas diferentes, e em cada uma delas está gravado o nome de uma das doze tribos de Israel (Êxodo 28,15-30), irmanadas, como se fosse uma joia familiar em unidade harmónica. Extraordinária simbologia! O sacerdote carrega aos ombros (Êxodo 28,12) e leva sobre o coração (Êxodo 28,29) todos e cada um dos filhos de Israel! É assim que se vê bem a missão do sacerdote. Mas vê-se igualmente bem que se trata de um povo todo ungido, todo sacerdotal e aromático.

9. Dizia bem a lição de hoje do Livro do Apocalipse: «Graça e paz […] da parte de Jesus Cristo, Aquele que nos ama, que nos libertou dos nossos pecados com o seu sangue, e fez de nós um Reino de Sacerdotes» (Apocalipse 1,4-6), respondendo e cumprindo a lição do Livro do Êxodo 19,6, em que Deus dizia, com o verbo no futuro: «Farei de vós um Reino de Sacerdotes».

10. Guardemos connosco, Hoje, amados irmãos, esta unção e este reino de sacerdotes. Sim, somos um presbitério de Ungidos, desde o bispo, aos sacerdotes, aos diáconos. Ungido diz-se em hebraico Mashîah, em aramaico Meshîhâ, em grego Christós, termos que, em português, soam Messias e Cristo. O Ungido por excelência é, então, Cristo, Jesus Cristo, Jesus Ungido, e d’Ele todos sabemos que, enquanto Ungido com o Espírito Santo, passou pelo meio de nós fazendo o bem e curando e libertando e amando até ao fim, intensa e plenamente, sem pausas nem bemóis, porque Deus estava com Ele (Atos 10,37-38). Se o Ungido é Cristo, então nós somos outros Cristos, porque somos igualmente Ungidos. E se somos outros Cristos, então a referência da nossa maneira de viver terá de ser também sempre Cristo. Temos, então, de nos revestir de Cristo (Romanos 13,14; Gálatas 3,27; Colossenses 3,12-14), de fazer nosso o estilo de vida de Cristo, manso e humilde, orante, feliz, evangelizador, apaixonado, pobre, despojado, ousado, próximo e dedicado. Só assim, configurados com Cristo, cristificados, podemos viver e agir in persona Christi Capitis ou in persona Christi Servitoris, na pessoa de Cristo Cabeça do seu Corpo, que é a Igreja, ou na pessoa de Cristo Servo do seu Corpo, que é a Igreja. É assim que dizemos hoje, nesta Quinta-Feira Santa, a nossa identidade Sacerdotal e Diaconal.

11. Mas também vós, Fiéis Leigos, batizados e crismados, sois, na verdade inteira, outros Cristos, porque fostes também Ungidos com o óleo do Crisma, que recebe o seu nome de Cristo. Cristo significa Ungido. Crisma significa Unção. Também vós, amados Fiéis Leigos, fostes Ungidos na fronte, com o óleo do Crisma, no Batismo e na Confirmação. Além de Ungidos na fronte, no Batismo e na Confirmação, os Sacerdotes foram ainda Ungidos nas mãos com o mesmo óleo do Crisma, e o Bispo foi-o ainda na cabeça. Também as igrejas e os altares são ungidos com o óleo do Crisma no dia da sua Dedicação.

12. Mas não podemos ficar só pelo exterior – a fronte, as mãos, a cabeça –, e pelo pouco óleo, tão pouco que mal se vê e mal se sente, com que costumamos fazer esta unção. Quando lemos, na Bíblia, relatos de Unção com óleo, por exemplo, quando Samuel unge Saul (1 Samuel 10,1) ou David (1 Samuel 16,13), ou quando admiramos a bela cascata do Salmo 133, que canta a unção sacerdotal, constatamos logo que anda ali demasiado óleo perfumado, de modo a encharcar os cabelos e os vestidos, e a regar ainda o próprio chão. Somos então levados a perguntar: porquê tanto óleo, se acaba por escorrer e se perder no chão? E a resposta é: derramando tanto óleo na cabeça, vê-se que ficam empapados os cabelos, os vestidos, e acaba por escorrer para o chão. Mas o povo bíblico vê ou compreende ainda mais, muito mais, e é para este «mais» que é preciso chamar ainda a atenção. O povo bíblico compreende ainda que desse muito óleo em grande quantidade derramado na cabeça, uma parte entra para dentro da cabeça, e vai banhar o interior do homem, vai banhar o coração, a alma e as entranhas.

13. Aí está então a verdade da Unção com o óleo do Crisma que fazemos na fronte, nas mãos ou na cabeça. Na verdade, é no coração que somos Ungidos. E se a Unção feita na fronte, nas mãos ou na cabeça pode sempre ser lavada com um pouco de água e sabão, a Unção feita no coração é indelével, imprime carácter, não pode mais ser apagada. É assim, amados irmãos Ungidos no coração, que não podemos mais deixar de ser quem somos, outros Cristos: eu, bispo; vós, sacerdotes; vós, diáconos; vós, fiéis leigos.

14. É este óleo do Crisma, com que todos somos ungidos no coração, identificando-nos assim com Cristo, que vai ser, nesta Missa Crismal, confecionado e consagrado pelo Bispo, com o testemunho e cooperação dos Sacerdotes. Vão igualmente ser benzidos o óleo dos enfermos, destinado a servir de remédio e de alívio aos doentes, e o óleo dos catecúmenos, destinado a preparar e dispor os catecúmenos para o Batismo.

15. O óleo do Crisma que vamos consagrar, e os óleos dos enfermos e dos catecúmenos que vamos benzer, constituem, no meio de nós, um autêntico manancial ou programa de vida. Igual ao de Cristo. Outros Cristos, Ungidos no coração, para levar o anúncio do Evangelho a todos os nossos irmãos. Se somos outros Cristos, Ele está connosco, em nós, no meio de nós. A messe e a plantação são d’Ele. A Ele a honra, a glória e o louvor para sempre. Ámen.

António Couto


AO PÉ DA TUA CRUZ, SENHOR!

Março 22, 2024

Como é fácil, Senhor Jesus,

Daqui, de ao pé da tua Cruz,

Avistar a paisagem deste tempo,

Compreender-lhe a mensagem,

Respirar-lhe o alento.

Daqui, de ao pé da tua Cruz de Luz,

Sem dúvida o lugar mais alto do mundo,

Mais alto e mais profundo,

Vê-se bem, com toda a claridade,

Que a lonjura do tempo não é horizontal.

Eleva-se em altura.

Como a tua túnica tecida de Alto-a-baixo,

Vertical,

E sem costura.

Tu vens do Alto, Senhor.

Tu vens de Deus.

Tu és Deus.

Tu és o Justo

Que chove das alturas

Sobre a nossa humanidade sedenta e às escuras.

Vem, Senhor Jesus,

Alumia e rega a nossa terra dura,

Acaricia o nosso humilde chão

E modela com as tuas mãos de amor

Em cada um de nós

Um novo coração

Capaz de ver.

Capaz de Te ver

Nascer

Em cada irmão.

António Couto